O Rio Amazonas não é um, são muitos


O belo espetáculo do Encontro das Águas

Gervásio Uriaiê acordou de uma noite mal dormida por volta das 6 horas, no retorno a Manaus. Deixou a rede, o corpo doendo, e subiu ao convés superior do Parintins, barco de linha entre a cidade do mesmo nome e a capital amazonense.
O sol já estaria aparecendo se não fosse o tempo nublado, resto do temporal do dia anterior। "Oh, quié isso? o Rio Amazonas ficou mais estreito e as águas estão escuras parecendo o Rio Negro!", estranhou।

- Aqui não é o Amazonas, é um dos braços do rio, o Paraná da Eva, o curso do Amazonas está pra lá daquelas matas, respondeu um homem que olhava a bela paisagem em companhia de duas crianças. Nosso viajante limpou os óculos, esfregou os olhos, mirou para o lado apontado - água, terra e mata, água outra vez, outro bloco de terra e mata mais longe - buscando entender.
Vista do centro de Manaus quando o barco vai se afastando do porto

- Paraná, igarapé, igapó, é água demais, o grande rio mesmo não dá pra ver daqui, cismou Gervásio Uriaiê, tabaréu do sertão baiano de Jeremoabo, besta com tanta água, saboreando as novas palavras de seu vocabulário। "O Amazonas propriamente dito tem quê largura?", quis saber pra continuar a conversa.

- Uma média de dois quilômetros, mas se você considerar todo o conjunto, de uma margem à outra dá uns 100 quilômetros, disse o morador da região. E falou muito mais: dos barcos, de ferro e de madeira, dos riscos de temporais nesta época de inverno, da criação de búfalos nas margens – animais precoces em relação aos "brancos", quer dizer, os bois (o búfalo é preto).


O emaranhado de redes em um dos convés

Enquanto isso, o barco - o maior da linha Parintins/Manaus, de ferro, quatro "pisos", "andares" – matracava seus dois motores naquele arrastar de paquiderme, levando pouco mais de 400 passageiros (capacidade para 615)। São em torno de 20 quilômetros por hora, em média 20 horas de viagem descendo o rio e 24 subindo. De uma cidade à outra, 420 quilômetros pelo leito sinuoso das águas (369 quilômetros em linha reta).

Mas é assim। Ou então de avião. Porque não há rodovia, tampouco para Belém. "Ah, estrada de carro agora temos pra Itacoatiara" (cidade a 286 quilômetros da capital por rodovia, 204 quilômetros em distância fluvial), uma novidade deveras fascinante na região, as pessoas logo se referem a isso quando o assunto é viagem.

A visita a Parintins, a cidade turística do boi-bumbá, grande festança no mês de junho, foi na verdade a desculpa usada por Gervásio Uriaiê para conhecer a controvertida viagem de barco. Seu plano era descer o rio até Belém ao findar a temporada em Manaus, mas seriam quatro dias numa rede, naquele bolo de gente, seria demais! Decidiu encurtar a aventura. Ao invés de quatro, um dia. Daí Parintins.

Comprou passagem, a rede e as cordas। "Não esqueça as cordinhas para amarrar a rede", não faltou quem avisasse, é fundamental.
Detalhe importante: durante toda a preparação para a sonhada viagem de barco pelo Rio Amazonas a imprecisão de informações, como horários, distâncias, etc, é impressionante। Aliás, informação correta não é o forte das pessoas.
O Príncipe do Amazonas, barco de madeira com capacidade para 262 passageiros, só zarpou de Manaus por volta das 14 horas e ainda ficou retido mais meia hora pela inspeção da Capitania dos Portos। Na passagem, a saída estava marcada para 10 horas। Saiu às 12:30 horas do porto principal e, logo em seguida, 300/400 metros adiante, atracou no cais de Manaus Moderna, sempre embarcando mais carga e mais gente.

É normal, ninguém reclama। Cada um trata de amarrar sua rede – ou pedir a alguém que o faça, como foi o caso do nosso viajante, sem problema – e se instalar, o mais confortavelmente possível, se se pode falar em conforto naquele emaranhado de redes. A demora é tanta que não faltam os camelôs dos mais diversos produtos, inclusive "quentinhas", pois neste caso o barco só fornece jantar e café da manhã.

O porto e o centro da cidade de Manaus foram se afastando lentamente. Meia hora após Gervásio Uriaiê pôde apreciar o belo espetáculo do Encontro das Águas – seis quilômetros em que os rios Negro (águas negras) e Solimões (barrentas) correm juntos, resistindo em perder sua individualidade para dar origem ao Amazonas (ver neste blog A Magia do Encontro das Águas).
O nascer do sol com o céu ainda nublado, depois de um dia de temporal

A partir daí é usufruir a paisagem grandiosa das águas, as margens com a floresta soberba ficam na maioria das vezes distantes। Final de tarde, início de noite, a fila para o jantar: frango assado, feijão, arroz, macarrão, salada e aquela farinha grossa amarelada. Um exercício de vida coletiva, cujo visual mais patente são as redes entrelaçadas nos convés.

No caso do Príncipe do Amazonas, que todos chamam simplesmente Príncipe, há uma média de quatro banheiros (dois com chuveiros e dois com vaso sanitário) para 100 passageiros, para uso inclusive dos que ocupam quatro pequenos camarotes। (No Parintins, o barco da volta, maior, há mais banheiros, com chuveiro e vaso no mesmo compartimento. Há também alguns camarotes com banheiro exclusivo, tudo apertadinho. Nos dois barcos, há ainda uma suíte, que estava desocupada).

Gervásio Uriaiê estava preocupado com a noite। Sabia que não conseguiria dormir toda a noite, ainda mais em rede. Não podia ler, pois quase todas as luzes foram apagadas. E agora, que fazer? "Vou lá no convés superior onde tem um bar e um televisor, não acredito que este povo daqui vai deixar de pegar as novelas da Globo...", matutava subindo os estreitos degraus.

Não deu outra। "Apesar do contraste com meu sertão de Jeremoabo, aqui também é Brasil", constatou. Estava assim de gente assistindo à novela e era uma sexta-feira, último capítulo das maldades de Flora e das bondades de Donatela. Achou que o final do dramalhão foi uma merda, mas não se considera uma opinião confiável no particular.

Em seguida seria o Big Brother, apresentado pelo "biógrafo" de Roberto Marinho. Nosso indômito viajante imaginou que iria conhecer o badaladíssimo programa. Finalmente! Mas errou. Final de A Favorita, a grande maioria desceu rumo às suas redes, e os tripulantes do pedaço botaram no ar DVDs com shows musicais, repletos de bundas e também, claro, bandas, a maioria, parece, regionais. Desfilaram a Banda da Lourinha, Segura a Pizada, Gata Assanhada, as duplas Victor & Leo e Pedro & Thiago.

O autor/personagem devidamente "acomodado" em sua rede

Lá pras 10/11 horas da noite, depois de comer um sanduíche no bar/lanchonete – onde pode-se tomar uma cervejinha de lata -, Gervásio Uriaiê empreendeu a tentativa de dormir. Tateou entre as redes em busca da sua, ralando em um, ralando em outro, deitou-se. Mas não se pode dizer que acomodou-se. A todo momento o companheiro ou companheira ao lado pode lhe tocar, involuntariamente, devido à proximidade. Nosso herói chegou a receber de um vizinho um chute na cara. Bem de leve, sem qualquer dano.

Um amigo acostumado a tais viagens, vendo as fotos das redes, exclamou: "Ah, estava vazio!" De fato, lotado realmente, deve ser um pouco pior. Não por acaso, havia espalhado pelas paredes um aviso no qual se advertia que homem e mulher deviam manter o respeito, "cada um em sua rede"। Acrescentava que somente mãe e filhos podiam ocupar uma mesma rede.

Paisagem a partir do barco Príncipe do अमजोनस
Porém, que o leitor não pense o contrário। O tabareu de Jeremoabo, quase 50 anos na carcunda, criador de cabras na caatinga, estava feliz por ter deixado sua terra para conhecer tanta água e tanta floresta, sua terra cuja glória histórica é estar mesclada com as façanhas insuperáveis de Antônio Conselheiro e Lampião।

"Que coisa! - se admirava Gervásio Uriaiê -, o autor está pirado. Como é que lembra da caatinga, de Conselheiro e de cangaceiro diante de um marzão deste? Certamente ele inventa essas doideiras e mistura com os relatos de suas viagens para torná-las mais glamurosas. Na próxima, vou pedir pra aparecer conhecendo o mar, meu sonho maior. Dizem que é mais água do que o Amazonas. Só vendo!"

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