A inominada




De Assunção (Paraguai)
– Alguém já deve ter dito que a linguagem, falada ou escrita, é o retrato da alma, mostra o que somos lá no fundo do nosso ser. É admirável os volteios verbais que as pessoas fazem para evitar falar naquela coisa terrível, indesejada, vestida de preto sempre com aquela foice (o alfanje) à mão, à espreita a cada canto, a sem-nome, a morte. Quanto eufemismo! (Minha admiração para os espíritas, que a encaram com tanta serenidade, pelo menos assim o dizem).

Não adiantou nosso José Saramago (“Intermitências da morte”), na sua ficção delirante e fascinante, dar-lhe o escopo de humanidade, ao ponto da inominada entrar em greve e provocar imenso caos entre nós, pobres e ricos mortais. (Como não adiantou a mitologia grega, sempre badalada pelos ocidentais, ter humanizado os deuses, tornando-os caprichosos, interesseiros e vaidosos como os homens. Eles continuam no Olimpo).

Repito, quanto eufemismo! Veja as jóias que garimpei nos anúncios fúnebres do jornal paraguaio ABC Color, de 4/setembro/2009. Transcrevo, apenas passando para o nosso português (a “última flor do Lácio, inculta e bela”, para lembrar o famoso verso do soneto de Olavo Bilac. A vida perderia pelo menos 50% do charme se não existissem os poetas, não agüento a tentação de citá-los).

Vamos às jóias: “
Atendeu ao chamado do Senhor em...” (esta fórmula é repetida dezenas de vezes). “Está no Céu desde... e de lá nos acompanha...” “Diosito (em português não se usa o diminutivo de Deus, seria Deusinho) e os anjos cantarão para ti no Céu e nós cantaremos para ti aqui na Terra...” “Ao se chegar aos três anos de teu regresso à Casa celestial...” ou “de tua partida ao Reino celestial...”

“Dormiu na paz do Senhor em...” “Hoje completam cinco anos de teu regresso à casa do Pai...” E na maioria dos anúncios seguem os elogios superlativos: “Sempre estarás presente em todos os valores que nos deixou para orientar nossas vidas: honestidade, fidelidade, caridade, dignidade e sobretudo... tua inesquecível e imensa bondade”.

E mais:
“Descansou na paz do Senhor em...” “Regressou (ou regressaste) à casa do Pai...” Para fechar, uma nota com o título “Um benemérito da pátria retorna à casa do Pai”, começando assim: “Um ex-combatente da Guerra do Chaco (guerra contra a Bolívia em 1932/35) já dorme o sono eterno dos justos”.

Comentários

Anônimo disse…
Se Deus realmente existe, então a morte é uma piada!
Anônimo disse…
De Eny:

Será que a solidão do domingo nesta cidade de má fama, que levou você a escrever sobre a morte? Mas eu gostei, pois para mim a morte é tão normal quanto a vida.
Aliás, ultimamente você está bem romântico. Sempre citando grandes nomes em suas matérias. Nesta de hoje (20/09/09) merecia aquela frase que sempre falamos nas nossas conversas sobre a vida, o amor e a morte do filme de John Houston "Os vivos e os mortos":

"Melhor passar para o outro mundo na glória da paixão que murchar melancolicamente com a idade."

Eny (por Fabiano
Jadson disse…
Fabiano, essa questão da existência ou não de Deus, me lembra o grande Bertrand Russel. Contam que lhe perguntaram o que ele diria se topasse com Deus em sua frente, depois de morrer. Ele teria dito mais ou menos assim: "Sinto muito, mas não vi indícios de sua existência lá na Terra".
Eny, creio que pensar cada vez mais na morte é natural, à medida que se vai envelhecendo, não é por acaso que a maioria vai se aproximando mais das religiões. E esse negócio de "murchar melancolicamente...", frase da qual vc gosta muito, é realmente o fim da picada. Temos que buscar uma fórmula, dentro do possível e do impossível, para aproveitarmos "o resto da mocidade".
Oi...
pois é Jadson. Questões essas que nunca responderemos, pois somos os unicos animais capazes de fazer esse tipo de pergunta sobre a possibilidade de existir um fim ou não. Limitados, só temos que ter Fé. É diicil imaginar que um "EU", da maneira como existe, não seja de fato algo que sempre existiu, como pensava Aristóteles.
Somos muito complexos. E, creio e que o bonito da vida é o misterio!
um fortíssimo abraço caro amigo!