O ESTRANHO MUNDO DOS MORADORES DE RUA

Debaixo do Viaduto do Glicério, eles fazem "festa" para as fotos, um exibe
o pedaço de pão como se fosse um troféu
De São Paulo (SP) – “Você eu conheço, já vi por aqui, mas tem muita gente que aparece uma vez, quer tirar foto da gente, chamo de ‘turismo de doação’, ah, não gosto não, gostei que vocês pediram permissão para tirar fotografia, está certo...” Era Maria, dona Maria, seria mesmo? falou o nome com má vontade, falou, falou, se irritou um pouco quando perguntei onde ela morava, talvez porque estava na cara que morava na rua. Falava com Lana e desconfio que ela me enquadrava no tal “turismo de doação”.

No batente/porta da agência da Caixa Econômica/Liberdade
Estávamos entrando no simpático bairro da Liberdade, quase 10 horas da noite de um domingo, uma fileira de moradores de rua/trabalhadores de rua/mendigos, a quem Lana e Cesar ofereciam “um salgado, um suco”, sentados, deitados, de pé, pelos passeios e batentes. Mas, àquela hora, o estoque de uns 100 pãezinhos com manteiga e dois vasilhames de suco de maracujá já estava se esgotando. Uma parte da “clientela” lamentava: “Ah, dou azar... logo na minha hora acabou”, “oh, sentimos muito, fica pra outra vez, no próximo domingo”, consolava o caridoso casal.

Lana e Cesar posaram para uma foto como a festejar mais uma jornada cumprida. Todo domingo à noite, a partir das 7 horas, os dois têm uma missão: saem por ruas, geralmente do Centro Velho de São Paulo, puxando carrinhos carregados de pães, sanduíches, frutas e sucos e vão distribuindo pelas calçadas e pelos socavões escuros da grande cidade, onde transita e/ou se abriga uma gente um tanto diferente, pelo menos para olhos habituados a ver outras paragens, mais turísticas, vamos dizer assim. Fazem isso há um ano e meio. Os alimentos são doações que conseguem de pequenos comerciantes de bom coração, às vezes eles próprios compram algum ingrediente, a manteiga ou o açúcar, por exemplo.

Um mundo, de fato, clandestino, feio, obscuro

Desta vez, eles estavam sem carro e decidiram por um itinerário nas proximidades de Aclimação, onde residem. Desceram a Rua Bueno de Andrade e concentraram a distribuição dos pães e suco embaixo do Viaduto do Glicério, área onde “se esconde” muita gente, muito mais gente do que os passantes distraídos possam imaginar. Gente que está sempre por ali, que faz ponto por ali, que trabalha, geralmente coletando coisas pelas ruas, latinhas, papelão, metais, objetos que vão pra o lixo, saem do lixo e viram de novo mercadoria, de valor, às vezes até valor “agregado”, para usar o jargão do economês. Um mundo, de fato, clandestino, feio, obscuro, para nós, “bem nascidos” e/ou “bem sucedidos” nesta nossa emergente potência capitalista.

Um que diz viver da coleta e reciclagem de tais objetos conta uma incrível história: ele e mais quatro companheiros juntam peças de roupa e calçados e, de quando em quando, despacham, pelo Correio, para pessoas necessitadas do Norte e Nordeste. Diz que é paulista, é um trabalho voluntário, não ganham nada com isso. Mas vocês fazem parte de alguma entidade? Fazemos sim, o nome é Amigos e Amigas. E quem paga a despesa do Correio? Nós mesmos pagamos. Mas vocês despacham pra quem? Pras prefeituras. Prefeituras das cidades nordestinas? Sim, do Norte e Nordeste, repete.

Cesar dá o suco, enquanto Lana é encarregada de dar o pão
Ao lado, um outro fala, fala, fala, mas ninguém entende nada do que ele diz, está bêbado (ou drogado, o que vem a dar no mesmo), não faz muita questão do pão e suco oferecidos. Outros e outros vão pegando o lanche, Lana dá o pão, enquanto Cesar dá o suco, eu sou chamado a colaborar segurando os copos plásticos, uns pedem mais de um lanche, para um amigo/uma amiga que está logo ali, encostado/deitado por ali. No vão mais amplo do viaduto se “descobre” bem mais gente, uma variada comunidade: uma bonita morena e um rapaz pegam sua comida e se sentam num canto, comem e depois cantam, cantam e ficam a cantar; uma moça branca, bem vestida, elegante, anda entre uns e outros, com ares de princesa; um rapaz bem humorado, quase negro, brinca com os cabelos longos meus e de Cesar, toca nas nossas orelhas e pergunta pelos brincos (ele usava brincos).

No lugar do suco de maracujá, por que não uma pinga?

Faltaram as fotos para ilustrar a “riqueza” do ambiente, Lana e Cesar avisaram não ser conveniente fotografar ali. Muitos estavam deitados, embaixo de cobertores e mantas, não era uma noite muita fria, mas sempre há uma pequena fogueira por ali, para esquentar, para alumiar. Uns se levantam para tomar seu lanche, outros se erguem e comem sentados na cama (não sei se escrevo “cama” com ou sem aspas). Um senhor idoso recusa o suco, pede uma pinga, “ah, pinga não temos, só suco”. Um outro pede ajuda a Lana para voltar pra casa, conta que é militar reformado, sua família o jogou na rua, tomou conta de sua pensão e ele vive agora abandonado.

Os cachorros fazem a vigilância
Em outra área do viaduto pude fotografar, pedimos permissão, claro. E o pessoal fez “festa” para sair nas fotos, exibiam o lanche como um troféu, se abraçavam entre cobertores, o fogo aceso, uma alegria que só vendo (vejam as fotos). Um bocado de cachorros estava por ali, é para a proteção, eles latem diante de qualquer ameaça, explicaram.

Em seguida tomamos o rumo do bairro da Liberdade, pelas ruas Conselheiro Furtado e da Glória. Depois retornamos ao nosso mundo “normal”. Lana e Cesar voltarão lá outros domingos. Quanto a mim, deixei só num canto da lembrança (e agora na blogosfera) o estranho mundo dos moradores de rua.


ENFRENTANDO OS PROBLEMAS SOCIAIS

Lana e Cesar posam para foto depois de cumprida mais uma missão
dos domingos à noite
Herlana de Souza Silva (Lana) e Cesar Allegretti fazem este tipo de atividade todos os domingos à noite. Acreditam ser uma contribuição no enfrentamento dos problemas sociais do país. Além de dar o lanche, eles procuram conversar com as pessoas "em situação de rua", visando elevar sua auto-estima, o que, segundo eles, pode ajudar na busca da volta à casa ou dos familiares ou da reconstrução, de alguma forma, de suas vidas. Ela tem 33 anos e é formanda em Marketing Comercial. Nasceu em Manaus (AM) e vive em São Paulo há quase 10 anos. Ele tem 27 anos, é paulistano e formado em Administração de Empresa. Ambos trabalham, são solteiros e sem filhos. Pediram a divulgação de e-mails para o caso de alguém querer ajudar com alguma doação: elegya77@hotmail.com e/ou cesarpaulo19@yahoo.com.br .

Comentários

Joana D'Arck disse…
Bela matéria Jadson. Tocante mesmo, principalmente pelo respeito e solidariedde demonstrados pelo casal em relação aos "moradores de rua". Quando estive aí você me apresentou Lana, não foi? Me falou do trabalho voluntário dela e do convite pra você acompanhar. Vejo que você está descobrindo as diversas face dessa metrópole e se apaixonando por ela cada vez mais.
isabel disse…
Realmente, Jô, uma matéria emocionante. Saber de tantas pessoas que dedicam suas vidas, independente de que dia seja, - mesmo um domingo, quando as pessoas se recolhem para se preparar para a segunda - é muito gratificante. O mundo seria bem outro se houvesse mais solidariedade aos excluídios. Que bom também Jadson, sua sensibilidade.Você sempre foi uma pessoa dez. Longa vida para esses dois anjos...
Joana D'Arck disse…
Ops! Correção: eu quis dizer "faces" dessa metrópole. Bel, você disse bem, anjos existem.
Unknown disse…
O sistema capitalista nos empurra para o caos. Para que alguns possam ter muito necessariamente outros tem que perecer.
Urge as reformas estruturais, o país precisa de reformas urbanas e rurais.
Desejamos que nossa presidenta consiga erradicar a pobreza e diminuir as desigualdades sociais.