“AMÉRICA LATINA É O ÚNICO CONTINENTE DO MUNDO ONDE TEMOS TIDO ALGUNS AVANÇOS”



François Houtart: "O papel do Estado não pode ser concebido sem levar em conta a situação dos grupos mais marginalizados socialmente, os sem-terra, as castas mais baixas ignoradas por milênios, os povos indígenas da América e os excluídos de ascendência africana; e, nesses grupos, as mulheres são muitas vezes duplamente marginalizadas"
 O estudioso divide os países latino-americanos em três grupos: o Brasil está entre os de modelo que “não transforma profundamente a sociedade”, enquanto a Venezuela “é um país que avança para um novo modelo, onde as mudanças são mais aprofundadas”


Por Nilton Viana, do jornal Brasil de Fato (reprodução da parte final de entrevista do sociólogo belga François Houtart, sobre a crise do capitalismo, publicada com o título “A causa da crise financeira é a lógica do próprio capitalismo”)


Como o senhor analisa a América Latina neste contexto da crise e qual é o papel dos movimentos sociais?


É muito interessante porque a América Latina é o único continente do mundo onde temos tido alguns avanços. Não ainda na opção de novo paradigma, nova orientação fundamental, porém, pelo menos avanços, que não existem em outros continentes até agora. Mas não é algo generalizado na América Latina. Há alguns países que só reproduzem o sistema, com sua dependência ao capital internacional, particularmente do norte do continente americano. São países como México, Colômbia, Chile, Panamá, Costa Rica, Honduras, etc. São países onde a burguesia local está totalmente vinculada com o sistema internacional e, nesse sentido, não tem outro projeto senão um projeto muito repressivo contra as populações.


Subordinação total.


Exatamente. Há uma segunda realidade, que são os países que podemos chamar de “adaptações ao sistema”. E aí existem dois tipos de países. Há os que dizem: sim, o sistema necessita de mudanças fundamentais e devemos nos adaptar à lógica do capitalismo. E para se ter mais justiça social e repartir parte do lucro, como já dizia Marx, com o rápido avanço das forças produtivas, temos um aumento dos lucros e da destruição da natureza. Nesse tipo de desenvolvimento se inserem Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, que possuem programas sociais eficazes. Com resultados indubitáveis porque milhões de pessoas saíram da pobreza, o que não podemos desprezar, porém, esse modelo não transforma profundamente a sociedade; isso representa apenas uma redistribuição de parte do lucro. Não podemos dizer que é uma mudança de paradigma. Entretanto, há países como Venezuela, Equador e a Bolívia, que têm outro discurso, o do socialismo do século 21, que pelo menos faz uma alusão a uma transformação fundamental. Pelo menos no Equador e na Bolívia, entre o discurso e a prática eu vejo grandes avanços, em que as práticas dos governos seguem uma orientação das demandas sociais apresentadas pelos movimentos sociais.


Então, neste contexto de crise, os países que estão mais vulneráveis sofrem mais as consequências?


Não estou seguro. Teoricamente pode-se dizer que sim, esses países serão mais afetados em médio prazo. Porém, no momento é igual em todas as partes. Mas, evidentemente, os países mais vinculados ao sistema serão mais afetados em médio prazo. Entretanto, desgraçadamente, países como Venezuela e Bolívia também são indiretamente dependentes do sistema global e sofrerão as consequências. O que eu acho é que é cedo demais pra se dizer, com diz Samir Amin, que eles conseguiram fazer uma desconexão. Não, não conseguiram. Mas é óbvio que as economias mais vinculadas à economia do Norte sofrerão as consequências a curto prazo.


No caso da América Latina, uma maior integração dos países seria uma alternativa frente a esse cenário mundial? O papel do Estado é fundamental neste contexto?


Absolutamente. Mas, para encerrar a tipologia, eu penso que a Venezuela é um país que avança para um novo modelo, onde as mudanças são mais aprofundadas. O papel do Estado não pode ser concebido sem levar em conta a situação dos grupos mais marginalizados socialmente, os sem-terra, as castas mais baixas ignoradas por milênios, os povos indígenas da América e os excluídos de ascendência africana; e, nesses grupos, as mulheres são muitas vezes duplamente marginalizadas. A expansão da democracia também se aplica para o diálogo entre os movimentos políticos e sociais. A organização de instâncias de consulta e diálogo pertence ao mesmo conceito, respeitando a autonomia mútua. O projeto de um conselho de movimentos sociais na arquitetura geral da Alba (Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América) é uma tentativa original nessa direção. O conceito de sociedade civil muitas vezes utilizado para esse fim ainda é ambíguo, porque ela é também o lugar da luta de classes: há realmente uma sociedade civil de baixo e de cima e o uso do termo de forma não qualificada permite muitas vezes a criação de uma confusão e a apresentação de soluções que ignoram as diferenças sociais. Por outro lado, as formas de democracia participativa, como os encontrados em vários países latino-americanos, também entram na mesma lógica da democracia em geral. Todas as novas instituições regionais latino-americanas, como o Banco do Sul, a moeda regional (o sucre) e a Alba, serão objeto de atenção especial na direção de propagação da democracia. E o mesmo vale para os outros continentes.


QUEM É:
François Houtart é sociólogo e professor da Universidade Católica de Louvain (Bélgica). É diretor do Centro Tricontinental, entidade que desenvolve trabalho na Ásia, África e América Latina.


(A entrevista me foi enviada pelo companheiro Otto Filgueiras, jornalista baiano há muitos anos em São Paulo. O título, a legenda e os destaques em negrito são deste blog. Quem quiser ler toda a entrevista, clique aqui).



Avós


Um grupo de 70 aposentados catalães, entre 60 e 80 anos, veteranos da resistência à ditadura de Franco, começou a utilizar sua experiência na luta clandestina, substituindo os jovens “indignados”. Se especializam em ações “relâmpago”. Ocuparam a sede do Banco Santander e a sede em Barcelona da agência de qualificação Fitch. Sua última ação foi o sequestro de um ônibus urbano devido ao aumento das tarifas. O sociólogo Felipe Aranguren, de 61 anos, tem se apresentado como porta-voz do grupo. Destaca que agora “há mais mentiras” do que durante o franquismo, quando “a repressão era mais direta”. “Queremos fazer ver que os avós não estamos mortos – declarou -. Que estamos vivos e que apoiamos os jovens em sua luta”.


(Notinha da primeira página do jornal argentino Página/12, edição de hoje, dia 14)




Deus


“O que nós não queremos é morrer, por isso inventamos Deus e a eternidade. Pode ser que depois de morrer me depare com a grande surpresa e me apareça Deus Nosso Senhor, ainda que tampouco eu saiba por que teria que ser o deus dos cristãos e não outro”.


José Saramago em “A ilha ardente ou Conversação em Lanzarote”, do amigo português Baptista-Bastos

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