OPOSIÇÃO BANCÁRIA DA BAHIA: TUDO RECOMEÇOU EM ALGUM MOMENTO DE 1972 (Parte 1)



Geraldo Guedes deu o ponta-pé para as rearticulações da oposição sindical baiana em 1972 (foto de 1998, quando se inscreveu na OAB)
De Salvador (Bahia) - Em algum momento do ano de 1972, em Salvador/Bahia, em pleno esplendor da ditadura militar e do “milagre brasileiro”, fui procurado por meu colega Geraldo Coelho Guedes, no antigo Banco do Estado da Bahia (o Baneb, que foi depois “doado” ao Bradesco pelo então governador Antonio Carlos Magalhães, o famigerado ACM, durante o reinado do neoliberalismo no Brasil). Não nos conhecíamos até então. Ele deduziu que eu seria alguém que gostava de política porque, pelos registros nas fichas da biblioteca do banco, percebeu que eu costumava ler livros de Jorge Amado. A partir daí nos relacionamos, dando início a uma enorme amizade. Ele estava se iniciando no ativismo sindical e político e me instigou a participar, com ele, de reuniões no Sindicato dos Bancários.

Geraldo distribuía, clandestinamente, um jornalzinho mimeografado, “O Bancário”, falando basicamente de leis trabalhistas, direitos dos trabalhadores contidos na Consolidação das Leis Trabalhistas (a CLT), coisas elementares. (Pode ser considerado o antecedente de “O Bancário” de hoje, jornal diário que o sindicato baiano mantém há mais de 20 anos, numa façanha inédita no sindicalismo brasileiro). Era uma época de terror e medo, só assim se compreende como uma publicação daquela fosse clandestina. Para os jovens de hoje deve ser difícil entender. Geraldo me contava que havia colegas que tremiam de medo quando ele lhe passava o jornalzinho.
O jornal diário dos bancários (edição de 26/02/2013), com mais de 20 anos de estrada, teve um tosco e clandestino antecedente nos idos de 1972
É que estávamos no auge da repressão, do terrorismo de Estado. As prisões, torturas e desaparecimentos (assassinatos) de militantes das esquerdas dominavam o cenário político, pelo menos no restrito mundo da militância revolucionária (a grande maioria do povo estava imersa no “pra frente Brasil!” do ditador de plantão Garrastazu Médici, mas nós não tínhamos uma consciência clara disso, na nossa cabeça predominava o sonho da derrubada da ditadura como panaceia para todos os males sociais).

Em 1972, os militares acabavam de destroçar os últimos resquícios da guerrilha urbana e dos partidos que a organizavam – o último dos seus maiores ícones, o capitão do Exército Carlos Lamarca, tinha sido fuzilado no sertão da Bahia em setembro de 1971, em companhia de seu companheiro Zequinha (José Campos Barreto) – e iniciavam a campanha de extermínio da nascente guerrilha rural na região do Rio Araguaia, no norte do país, patrocinada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), episódio que ficou na história como  Guerrilha do Araguaia.

Arrocho salarial e censura sob o apoio entusiástico da TV Globo

A censura e auto-censura amordaçavam a imprensa e as artes. As grandes empresas nacionais e transnacionais, os bancos e o latifúndio (hoje a serviço do agronegócio) viviam o paraíso sonhado pelas forças da direita, os trabalhadores sob o arrocho salarial, sem liberdade sequer para o esperneio normal do capitalismo dito democrático, tudo com o apoio entusiástico de meios de comunicação de massa, como a TV Globo.

As forças democráticas e das esquerdas, debaixo do tacão do AI-5 (Ato Institucional no. 5, decretado em dezembro/68, que radicalizou a ditadura), retomavam a resistência e a rearticulação no campo das lutas legais, ou lutas de massas, como dizíamos no nosso jargão. Tanto através do antigo MDB (Movimento Democrático Brasileiro, partido de oposição consentido pela ditadura que deu origem ao PMDB e que, na época, serviu de “guarda-chuva” para atividades de muitos da esquerda, especialmente militantes do PCB, Partido Comunista Brasileiro, o chamado Pecesão), como dos movimentos sociais, muitos deles influenciados por partidos clandestinos de esquerda: estudantes, profissionais liberais, moradores de bairros, camponeses, religiosos inspirados na Teologia da Libertação.

E, principalmente, os trabalhadores. E aí entrávamos nós, os bancários, com nossa “gota d’água” de contribuição na ação democrática e popular. Foi quando nós (Geraldo e eu) – no ano de 1972, repito - começamos a aparecer em reuniões do sindicato, discretamente, cheios de temor e cuidados, conseqüência do clima político delineado acima.

Qualquer atividade desse tipo, que cheirasse a indício de oposição ao chamado “sistema”, era passível de suspeita e perseguição. Hoje, como disse, é até difícil se acreditar que havia riscos num ativismo de aparência tão banal. Mas havia sim. A nossa idéia básica era se aproximar do sindicato e, mais pra frente, quem sabe? fazer uma chapa e derrotar os pelegos numa eleição sindical. Parecia um sonho distante. E era de fato. Por essa época nós dois nos tornamos militantes do PCdoB (na clandestinidade, claro. Militamos no partido até 1981, a maioria desse tempo já em outras áreas de atuação).

O pelego manhoso e seu eficiente assessor jurídico

O presidente-pelego do Sindicato dos Bancários era José de Oliveira Torres, de fala mansa, jeitoso, manhoso que só ele (morreu em maio/2012, aposentado como “juiz classista” da Justiça do Trabalho, talvez a mais cobiçada sinecura de um pelego). Seu principal parceiro de pelegagem na época era seu cunhado Moacir da Silva Cortes, então presidente da Federação dos Bancários da Bahia e Sergipe. O advogado que assessorava Torres nas reuniões era Eurípedes Brito Cunha, que após a queda da ditadura transmutou-se, aparentemente, num democrata, já que chegou a ser presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – seção da Bahia (OAB/Bahia). A citação do seu nome aqui não é gratuita: era uma peça importante nas reuniões. Através dele, usando um linguajar técnico e “indiscutível”, Torres derrubava qualquer sugestão ou proposta nossa sobre o andamento do trabalho sindical.
Geraldo Guedes, trabalhando no antigo Baneb, agência Central, Comércio (foto de 1970): exemplo de desprendimento pessoal e invisibilidade histórica
Quero destacar com ênfase esse momento de 1972, publicamente invisível, quando foi recomeçado o trabalho da Oposição Bancária na Bahia, depois da desarticulação de 1969, com a edição do AI-5. E fazer uma singela homenagem ao companheiro Geraldo Guedes, hoje advogado em Brumado-Bahia, exemplo de desprendimento pessoal e invisibilidade histórica. Se podemos eleger um símbolo desse novo despertar, façamos justiça: foi ele, com sua generosidade e seu bendito voluntarismo, o autor desse chute inicial.

Mas, claro, não foi somente Geraldo, nem eu tampouco. Aos trancos e barrancos, o movimento foi crescendo, crescendo, ganhou muitos outros valorosos ativistas, e chegou ao momento de maior visibilidade, em 1981: a oposição conseguiu finalmente derrotar a pelegagem da ditadura, com uma chapa composta de várias tendências de esquerda, encabeçada por Osvaldo Laranjeira, do antigo Banco do Estado de São Paulo/Banespa (hoje militando como quadro dirigente do PT de Salvador).

Esta é a primeira das três partes do relato mais amplo que escrevi sobre a experiência da Oposição Bancária da Bahia, relativa ao período de 1972/1975, do qual participei diretamente. Escrevi instigado a partir dum pequenino texto e depoimento pedidos pela direção do Sindicato dos Bancários da Bahia, no bojo dos preparativos da comemoração dos 80 anos da entidade, cujo evento principal está marcado para a próxima sexta-feira, dia 22, às 19 horas, no Bahia Café Hall (Avenida Luis Viana Filho, s/n - Paralela).

A segunda parte será publicada na quarta-feira, dia 20, e a última, na sexta-feira, dia 22.

Mais sobre o assunto neste blog: “Bancários: foto e frase emblemáticas da pelegagem na ditadura militar” - clicar aqui; e “Lembrança do destemido dom Timóteo” – clicar aqui.

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