“OS GOVERNOS E OS ESTADOS APRENDEM DAS LUTAS POPULARES" (parte 1)



Aguirre Rojas: governos progressistas da América Latina são anti-imperialistas, mas não mexem na estrutura de dominação capitalista (Foto: Dafne Gentinetta/Página/12)

Carlos Antonio Aguirre Rojas, cientista social e economista mexicano: ancorado no zapatismo mexicano, ele defende a autonomia dos movimentos sociais que tiveram seu auge em princípios do ano 2000 e que depois foram ofuscados pelos governos progressistas do continente.


Por Sergio Kisielewsky, no jornal argentino Página/12, edição de 29/04/2013 (aqui no blog Evidentemente a entrevista está dividida em duas partes; traduzida em homenagem ao companheiro Goiano, adepto da esquerda da esquerda)

Quando você fala dos movimentos anti-sistêmicos, aí incluídos os Sem Terra no Brasil, as organizações camponesas na Bolívia e os povos originários no Peru, Colômbia, como encara sua problemática e com que métodos de luta na América Latina?


– A denominação de movimentos anti-sistêmicos foi inventada pelo sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein. Ele a utiliza para englobar tanto os movimentos socialistas do centro do sistema como os movimentos de libertação da periferia, mas eu lhe dou outro sentido. Creio que há movimentos anti-capitalistas que lutam contra a exploração econômica, o estado capitalista, as classes e a cultura capitalista, mas há movimentos construídos a partir de 1968  que nos recordam uma tese de Marx que é muito valiosa, porém muito pouco lembrada: Marx nos diz em vários de seus textos que quando o capitalismo terminar vai se dar o fim de toda sociedade possível dividida em classes sociais e vai se dar o fim da pré-história humana; e do reino da necessidade se dará passagem ao reino da liberdade. O sentido do movimento anti-sistema tem justamente este sentido: os movimentos atuais na etapa da crise terminal do capitalismo não só lutam contra a exploração, mas também contra toda a herança da sociedade de classe e, por isso, emerge o movimento feminista que luta contra o machismo e o patriarcado; ou emerge o movimento ecologista que luta contra esta relação prepotente instrumental que o homem estabeleceu com a natureza há cinco séculos; ou a luta contra a divisão entre o trabalho manual e intelectual. A luta contra estas heranças da sociedade classista, e inclusive da pré-história humana, forma o núcleo da luta anti-sistêmica. Na América Latina os movimentos anti-sistema seriam, por exemplo, de maneira mais desenvolvida, o zapatismo mexicano, o movimento Sem Terra no Brasil - mais as bases do movimento, já que muitos de seus líderes pouco a pouco  adotaram uma posição menos anti-sistêmica e se separaram das bases, por isso em dezembro passado houve uma saída importante de 51 dirigentes do MST - e penso o mesmo dum setor da Conaie equatoriana (Confederação de Nacionalidades Indígenas), sobretudo o setor amazônico, e penso no movimento de Felipe Quispe na Bolívia ou nas Juntas de Moradores (Vecinales) do Alto (El Alto, cidade nos arredores de La Paz, é como uma extensão de La Paz) ou setores do movimento mapuche (a maioria no Chile) ou do movimento indígena do Peru.


– Estes movimentos como se enquadram na nova realidade do continente, pois há novos ares com a revolução bolivariana, com Correa, Evo, Dilma, Pepe Mujica, estes movimentos ajudam a construir uma nova realidade como sujeito social?


– Há três grandes forças que disputam o cenário político na América Latina. Uma é ligada ao passado, a mais retardatária, que puxa para trás, que seria uma direita-ultradireita que está representada no governo do México de Felipe Calderón que acaba de sair, mas também no governo de Enrique Peña Nieto, que parece que está desenvolvendo mais continuidades do que diferenças em relação ao governo anterior, apesar de um ser do PAN (Partido da Ação Nacional) e o outro do PRI (Partido Revolucionário Institucional), mas também representado pelo governo da Colômbia de Juan Manuel Santos  e pelo governo de Sebastián Piñera no Chile. Há um setor da direita militante que se tornou uma direita cínica, desavergonhada, que agora briga pelo poder político nas eleições e às vezes o ganha mediante a fraude como no México, porém é a força que está batendo em retirada. No outro extremo estão estes movimentos sociais anti-sistêmicos que cada vez mais estão exercendo uma pressão social forte e em todo o planeta, ainda que muitos deles se encontrem na América Latina. Só eles foram capazes de derrotar com mobilizações governos nacionais na Argentina, na Bolívia, no Equador e governos locais como aconteceu, por exemplo, em Chiapas (estado do México). Só eles tiveram a iniciativa de organizar o Fórum Social Mundial, que é uma iniciativa que foi muito importante e muito legítima nas suas primeiras cinco edições e depois deixou de ser anti-sistêmica e se homogeneizou (nota da Redação: se refere à parte das ONGs) e se tornou muitíssimo mais reformista, mas não devemos esquecer que nasceu na América Latina, são movimentos que já têm 15 anos, 20 anos lutando e têm uma tradição de luta consolidada que está servindo de modelo e de referência a nível mundial. E identificaria esses governos que você menciona: a revolução bolivariana, Rafael Correa, Evo Morales, Dilma Rousseff e outros, creio que são uma expressão intermediária desta pressão popular que foi tão forte e provocou uma crise política tão grande que levou ao poder grupos reformistas, que representam hoje uma opção social-democrata; quer dizer, que mantêm o neoliberalismo mas já não como neoliberalismo selvagem, sim como neoliberalismo moderado, e que o tratam de disfarçar com toda uma série de políticas sociais contra a pobreza, tipo o Bolsa Família, ou através de formas que dão mais prioridade ao gasto social, porém mantendo as estruturas capitalistas fundamentais, o que fazem é representar suas burguesias nacionais. Creio que são genuinamente anti-imperialistas e estão defendendo os recursos naturais para o Estado, daí que levam a cabo renacionalizações do gás na Bolívia, a YPF aqui (petroleira argentina). Estimular o gasto social é para fazer crescer o mercado interno de seus respectivos países, com o qual se beneficiam suas burguesias nacionais porque produzem para o mercado nacional. Dentro duma perspectiva provisória mais longa, creio que tais governos são como uma etapa de transição criada por esta força crescente dos movimentos populares. Quero ser otimista, creio que mais à frente estes movimentos populares terão a força e conseguirão instaurar auto-governos populares.


– Você diz isso porque esses governos não mexem na estrutura de dominação?


– Não mexem na estrutura de dominação capitalista, o Estado capitalista se manteve no fundamental, na mudança o social tem um pouco mais de margem, se trata de ajudar aos setores mais desprotegidos, às mães solteiras ou bolsas para os estudantes, mas a natureza do Estado capitalista que domina e despoja os cidadãos de seus direitos políticos não se eliminou. É curioso o que diziam representantes do governo venezuelano quando definem o socialismo do século 21: “Não vamos expropriar mais que aqueles latifúndios que estejam ociosos, mas os produtivos os respeitaremos”. Dizem: “Socialismo não é atacar a propriedade privada, e sim que se redistribuam melhor seus lucros” e dizia que o socialismo era o mesmo que o cristianismo a nível cultural.


– Você está colocando que o capitalismo tem muita maquiagem na sua aplicação, mas qual é a razão, então, para que a grande imprensa esteja tão contra estes governos e atue como um tipo de partido político de oposição?


– No México vivemos uma situação similar. A nível da TV temos um monopólio, um grupo que se chama Televisa que inclusive está presente nos Estados Unidos e que muitos de seus programas são exportados para muitos países da América Latina e Europa. Televisa ocupa 80% do espectro da televisão mexicana. Muitíssimo. Os governos foram debilitando sua capacidade de construção de consenso, as pessoas acreditam cada vez menos nos Estados.


– Pergunto pelo papel da imprensa que se empenha contra os governos progressistas.


– Creio que estes grupos que estão nos meios de comunicação adquiriram tal poder que se propuseram a fabricar presidentes e a destituí-los. No México um candidato, Vicente Fox, foi fabricado por Televisa, e agora na chegada ao poder de Enrique Peña Nieto, do PRI, a Televisa jogou um papel fundamental e eles sentem que esse poder se vê ameaçado por estes governos progressistas. O mesmo acontece com o grupo da TV Globo no Brasil. Eles atuam quando estes Estados neokeynesianos e neodesenvolvimentistas começam a avançar com uma política que mexe um pouco com seus interesses porque, por exemplo, quase todos estes governos constroem seus canais estatais ou propõem reformas para obter a construção de consenso e legitimar-se. Isto agride os interesses desses grupos e então eles reagem com esta virulência, porque querem ter sempre a capacidade de manipular a informação.


– Muitos opinam que o capitalismo vai continuar; há alguma possibilidade de que estes movimentos anti-sistêmicos triunfem na perspectiva duma sociedade mais solidária?


– Aqui eu sigo os pontos de vista do próprio Immanuel Wallerstein que faz 20 anos analisa a crise terminal do capitalismo. Ele assinala que nos últimos 30 anos vivemos fenômenos que nunca havíamos vivido no capitalismo, por exemplo, com a crise ecológica atual se está chegando a um ponto de não retorno onde o homem se arrisca muito. E grandes cientistas dizem que se seguimos este esquema depredador e de visão instrumental da natureza, onde pensamos como amo e senhor e assim explorá-la sem limites, estamos produzindo o esquentamento global e a redução dos polos ou os fenômenos do Niño. Se a humanidade não muda seu modo de relacionar-se pode acabar com a espécie humana. Foi o capitalismo que levou esta postura predatória sem limites em relação ao próprio entorno natural. Na crise econômica os economistas diziam que se não há crescimento não há inflação e se havia inflação era porque havia crescimento, as mercadorias e riquezas produzidas já são excedentes para os circuitos capitalistas. Por que crescem os mercados negros em todo o mundo? Porque a produção da riqueza se sente restringida aos circuitos de distribuição e de comércio capitalista e isso constrói as economias paralelas.


– E a barbárie e a guerra, muitos conflitos armados se dão pela disputa do excedente.


– Assim é. Agora essa ideia de que os jovens já não acreditam na política, esse dito que os argentinos inventaram e exportaram com êxito: “Que se vão todos, que não fique nem um só”, esta deslegitimação não apenas dos Estados mas também das classes políticas é um fenômeno que não se viveu antes, os jovens são educados no individualismo e no egoísmo feroz que quando se leva à prática provoca autodestruição. A política está em crise, a situação ecológica e econômica, as relações sociais e a cultura creio que nos autorizam a falar duma crise terminal do sistema capitalista como esquema civilizatório. Já deu tudo o que podia dar em termos positivos e chegou ao seu fim e isto aumenta as chances dos movimentos anti-sistêmicos, nunca tiveram mais oportunidades de vencer como hoje. (Continua)

Tradução: Jadson Oliveira

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