A VIOLÊNCIA ESTATAL QUE NOS ARRASTA PELO ASFALTO


Para as elites do país é inadmíssível que a "ordem" que lhes assegura no poder é sustentada por um grau altíssimo de violência estatal cotidiana.


Por Fábio Nassif, no portal Carta Maior, de 19/03/2014

Cláudia Ferreira da Silva foi assassinada por agentes de segurança pública. Moradora do Morro da Congonha, em Madureira (subúrbio do Rio de Janeiro), mãe de 4 filhos, negra, Cláudia havia saído pra comprar pão. Era domingo. Foi atingida por dois tiros, um no peito, outro na cabeça. Os policiais a jogaram no porta-malas da viatura e durante o trajeto seu corpo caiu no asfalto. Pelo relato de sua filha, Thaís, Cláudia ainda estava consciente quando foi arremessada no carro da polícia. Ela foi arrastada por pelo menos 350 metros e morreu. A cena foi gravada e divulgada na internet.

O roteiro que se segue diante de fatos como esse é o mesmo: os policiais afirmam que ela tinha ligações com o tráfico de drogas, que houve troca de tiros e que tentaram socorrê-la; o comando da Polícia Militar afasta os soldados envolvidos; o governo estadual promete apuração rigorosa do caso; a presidenta da República se diz chocada; a grande mídia explora o caso e se diz sensibilizada.

Todos esses protagonistas alimentam a mesma tese de que a morte de Cláudia se trata de uma exceção, um acidente, um erro de percurso, um incidente chocante e infeliz.

Os moradores da comunidade de Cláudia protestam. Mas para as elites do país é inadmissível que a "ordem" que lhes assegura no poder é sustentada por um grau altíssimo de violência estatal cotidiana. É considerada uma ameaça ao seu "Estado democrático de direito", a percepção generalizada, por parte da população, de que o assassinato de negros pobres das periferias são regra básica e fundamental da nossa democradura.

Exagero? Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2013, as polícias matam cinco pessoas por dia no Brasil. Duas em cada três pessoas mortas pela polícia são negras.

É tão incompreensível que tantos ônibus estejam sendo incendiados por aí?

A mídia cuida de somar a quantidade deles. Convocam “especialistas” em segurança para analisar os protestos violentos. Fazem o cálculo do prejuízo financeiro de tais depredações. E a narrativa se encerra no problema do trânsito causado pelos atos de revolta.

Ignoram, hipócrita e propositalmente, o grito da população oprimida que quer passar um único recado: os assassinatos praticados por policiais são a regra no estado de exceção que existe nas periferias.

Mais do que uma análise acadêmica sobre as características do atual regime político brasileiro, a verdade irrefutável é que o aprofundamento da militarização do sistema de segurança do país faz deste estado um dos mais violentos do mundo.

O ano de 2014 já está marcado por um nível de conflitividade social ímpar. Como lidar com uma população que tem deixado de aceitar o cotidiano massacrante que garante o poder confortante de uma minoria? Até agora o que se sabe é que o país se prepara, com leis e armas, para garantir a realização da Copa do Mundo da Fifa e, muito mais do que isso, para retomar a "estabilidade" necessária para a realização das eleições.

Ainda mais neste ano em que descomemoramos o golpe militar de 64, não é possível admitir a defesa da “democracia” e ao mesmo tempo a manutenção da militarização da segurança pública. Não tem sentido lógico nem político defender um modelo de ocupação territorial ostensivo e militarizado de favelas – ironicamente chamado de pacificação – e se dizer em choque com as mortes praticadas pelas forças públicas de segurança.

Nem mesmo o forte slogan da "guerra às drogas" - que justifica até hoje os crimes cometidos pelo Estado – tem conseguido esconder o fato de se tratar de uma guerra aos pobres.

Enquanto os problemas de fundo do país não forem encarados em um nível político superior e com uma agenda de enfrentamento à lógica do Capital, nossa história, incapaz de se livrar da dependência da violência estatal, continuará sendo arrastada dolorosamente pelo asfalto.  

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Fábio Nassif é jornalista da Carta Maior.

Desmilitarizar a PM (acrescento aqui comentário feito por Emiliano José - jornalista, escritor, ex-deputado e candidato a deputado pelo PT - no Facebook)

"O assassinato de Cláudia da Silva Ferreira no Rio de Janeiro não pode ser arrolado no tema geral da "violência urbana". Outra e mais uma vez a questão da Polícia Militar se coloca no centro da discussão política. Desmilitarizar a polícia é algo inadiável. Constituir uma polícia que proteja o cidadão, não o tenha como inimigo. A Polícia Militar, tal como existe hoje, foi constituída para combater a esquerda que combatia a ditadura, ficou subordinada ao comando central da ditadura. Aprendeu a enxergar o povo como inimigo. E mais e mais, se pobre. E mais e mais, se negro. Certo que a maioria de seus integrantes são originários das classes trabalhadoras - são pobres. Mas são aculturados para odiar e combater seus irmãos. Tem que mudar. Enquanto não muda, triste dizer, prossegue a matança de pobres e negros, pena de morte aplicada cotidianamente. Lutar para Desmilitarizar urgentemente a PM".

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