COMO ACABAR COM OS ABUTRES QUE AMEAÇAM A ARGENTINA



(Foto: Agência EFE/RBA)
É de imperiosa necessidade que a Argentina não aceite as condições dos fundos-abutre porque, então, o restante dos credores também será de abutres.

Abutres não fazem parte das eleições, não participam da polícia e do controle democrático.

Por Alfredo Serrano, do Opera Mundi – reproduzido de RBA – Rede Brasil Atual, de 26/06/2014

Buenos Aires – O neoliberalismo é o culpado. São apenas cinco palavras que sentenciam exatamente o que está acontecendo há décadas com esses abutres que sobrevoam a terra à vontade, com o vento a favor, por cima do bem e do mal. Têm licença para matar, e absoluta soberania para eleger quem, como e quando querem atacar. São abutres particulares porque não se alimentam de animais mortos como diria qualquer livro de ciências naturais. Na verdade, nutrem-se de países com alguma patologia derivada de uma herança maldita. São uma nova espécie de abutre, muito parecido com o ser humano, com olhos, nariz e boca, mas sem coração, nem sentimento, nem ética.

São os denominados realmente fundos-abutre, que inumanamente se transformam em juiz e parte da concepção de qualquer povo. Não fazem parte das eleições; dizem não participar da polícia; buscam ser um sujeito parademocrático, situando-se fora do controle democrático. Optam por se apelidar com eufemismos vigaristas: mercado, livre-mercado, segurança jurídica ou capital de risco. Mas, pelo contrário, os fundos-abutre  são seres inumanos com nomes e sobrenomes, com amigos poderosos, que atuam mafiosamente alocando juízes, financiando campanhas eleitorais, comprando meios de comunicação, criando fundações, centros de pesquisa, revistas acadêmicas.

Mas por que a culpa é do neoliberalismo? Porque é o neoliberalismo o encarregado de administrar o mapa-múndi capitalista com regras do jogo a favor de alguns fundos-abutre sem necessidade de passaporte, com visto próprio. O neoliberalismo se empenhou em criar um novo mundo fictício financiado. A economia real foi substituída por um sem fim de apostas, pela economia do cassino, da roleta-russa onde a pistola está manipulada para que o disparo sempre vá parar nas têmporas do povo. É a nova economia de papel que nunca tem valor de uso. O valor dominante é o valor de troca que se impõe em mercados fechados onde não há nem competição, nem liberdade, nem justiça.

O neoliberalismo foi a forma eleita por uma reduzidíssima elite enriquecida para nos fazer crer que o maior dos dissensos pode ser denominado Consenso de Washington. Criaram-se dogmas e mandamentos sob ameaças, chantagens e castigos. Nesse habitat, nasceram os fundos-abutre que se especializaram em comprar a dívida pública de liquidez duvidosa que uma empresa privada possui. O fundo-abutre justifica sua existência assumindo um suposto risco de comprar um papel de pagamento complicado. Palavras ao vento.

O fundo-abutre nunca assume risco porque conta com tudo a seu favor para acabar obrigando quem seja, como seja e quando seja a pagá-lo. O fundo-abutre tem tanto dinheiro que compra toda a segurança jurídica que exija sua usurpadora taxa de juros. Não há risco: o fundo-abutre sabe que não perde ao comprar uma dívida a baixo custo por liquidez duvidosa porque tem o poder necessário para fazer com que esse país pague. Como? Porque o neoliberalismo, no concreto, dedicou-se minuciosamente a escrever as linhas finas que regulam esse tipo de negociação. A armadilha dos poderes hegemônicos é que o juiz também é parte. O neoliberalismo obriga a ceder soberania, e, por conseguinte, o julgamento sobre o pagamento da dívida pública de um país acaba acontecendo em Nova York, em Haia, ou em Washington.

Tempos de colônia

O governo kirchnerista herdou a dívida dos governos neoliberais no uso ilegítimo dos fundos públicos. Decidiu pagar esse lastro, mas negociando. 92% dos tomadores da dívida aceitaram; o restante, não. Então, entra em ação o fundo-abutre que é fixado nessa suposta carniça que não é tão carniça porque tem tudo a favor para que termine conseguindo sentenças que obriguem o pagamento, o embargo, o bloqueio ou a ameaça. O fundo-abutre compra esses papéis para cobrar quando puder. O governo argentino não conhecia nem o fundo-abutre, nem lhe vendeu nada. E agora está em suas mãos.

Por que não proibir revender a dívida pública assim como se proíbe revender os ingressos dos mundiais? O neoliberalismo favorece esse capitalismo financeiro canibal, e, por isso, não proíbe essa revenda. A transitividade não é sempre válida como critério de eficácia econômica e social. Em relação à propriedade da dívida pública, aceitar a imposição neoliberal da transitividade é ir contra a soberania.

Estar nas mãos de um abutre — ou de qualquer juiz em Nova York — é o mesmo que aceitar os tempos da colônia, isto é, a periferia nas mãos da metrópole; o Sul dependente do Norte. É uma oportunidade histórica para que a Unasul, a Celac, o G77+China, o Mercosul, o Brics, todos esses novos atores da transição geopolítica multipolar sejam inquebrantáveis sobre essa questão, e proíbam de uma vez por todas que a soberania do povo esteja nas mãos de uma aposta de um jogador que sabe que tem todas as fichas a seu favor.

É o momento para vedar a venda sobre a venda de outra venda de algo tão soberano como um título da dívida pública. É hora de considerar a dívida pública, como é pública, como parte da declaração dos direitos humanos. É hora de ter mecanismos reativos, novas alianças estratégicas regionais e internacionais que respondam com alternativas financeiras que permitam o pagamento da dívida pública em condições de soberania.

É de imperiosa necessidade que a Argentina não aceite as condições dos fundos-abutre porque, então, o restante dos credores também serão abutres. A Argentina não está sozinha nesse mundo, e, portanto, em vez de ir a Nova York, deve buscar acordos com todos os países amigos para encontrar as vias de cobrar em outras latitudes que são tão seguras quanto o solo estadunidense. Se a justiça do Norte não deixa pagar, a vontade política há de encontrar outra forma de pagamento para aqueles que estejam dispostos a cobrar nas condições soberanamente estabelecidas.

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