FUNDOS-ABUTRE: “SE DEIXAMOS QUE OBTENHAM UMA VITÓRIA, OS DERROTADOS SOMOS TODOS NÓS”



(Foto: Página/12)
Entrevista com embaixadores latino-americanos perante a ONU sobre a sentença do juiz estadunidense Thomas Griesa contra o Estado argentino: os representantes do Equador, Venezuela, Bolívia, Cuba e Argentina se reuniram para ver uma partida de futebol (durante a Copa do Mundo) e falar de política. A unanimidade é que os fundos-abutre são um perigo para a região e todos os países devedores.

Por Sebastian Abrevaya, de Nova Iorque – reproduzido do jornal argentino Página/12, edição de 06/07/2014

Diferentemente de épocas anteriores, a unidade dos representantes da América Latina e Caribe em apoio à posição da Argentina frente aos fundos-abutre vai muito mais além das paredes de foros como a OEA, as Nações Unidas ou a Celac. Com a justificativa de ver o jogo Brasil x Colômbia, pela Copa do Mundo, se reuniram os embaixadores ante a ONU, do Equador, Xavier Lasso; Venezuela, Samuel Moncada; Bolívia, Sacha Llorenti; Cuba, Oscar González e Argentina, Marita Pérceval. Os representantes dos governos mais importantes da região também compartilharam uma análise da política regional, do conflito com os capitais financeiros internacionais, o papel dos organismos multilaterais, os meios de comunicação e a situação dos Estados Unidos.

–O que é que se põe em jogo quando se produz o ataque dos fundos-abutre contra um país, como neste caso da Argentina?

Xavier Lasso: – Na minha opinião de equatoriano põe em questão todas as propostas dos governos progressistas da região. É claríssimo para nós: a Revolução Cidadã do Equador começa com uma auditoria integral da nossa dívida pública, na qual se descobrem as barbaridades que foram feitas e se conseguiu negociar porque se descobriu que houve trâmites dessa dívida ilegal e ilegítima que haviam produzido “anatocismo”, que é a cobrança de juros sobre juros. Calculamos que pagamos cinco vezes a dívida externa do Equador. Eu escutava o ministro (da Economia, Axel) Kicillof que a Argentina destinava algo mais de 25 centavos de dólar para servir à dívida, no nosso caso era mais dramático porque destinávamos 55 centavos para a dívida e nunca a pagávamos. Sempre pagávamos juros e nunca o capital. Quando fazemos a auditoria e convocamos os credores vimos que não só eram estrangeiros, mas também equatorianos. E essa é uma das perversidades em tudo isto, porque explica as alianças internas de meios de comunicação e de interesses financeiros e econômicos. E quando na Argentina se produz isto dos fundos-abutre entendemos do que se trata. Esta é uma investida desses interesses que têm uma enorme cobertura midiática. Como equatoriano temos estes temas colados na própria pele. Não há futuro de independência e autonomia econômica se não somos capazes de resolver estes problemas.
Axel Kicillof, ministro e negociador da dívida, falando nas Nações Unidas (à esquerda, o chanceler argentino Héctor Timerman) (Foto: Página/12)
Sacha Llorenti:– Este é um tema de preocupação regional, continental, global, porque desnuda como está organizado o mundo, desnuda como o capital financeiro, especulativo, está acima não apenas dos direitos das pessoas mas inclusive acima da soberania dos Estados. Ao mesmo tempo desnuda as limitações e deficiências que existem nos mecanismos internacionais que deveriam ser transparentes e eficientes no controle. Também desnuda a deficiência das Nações Unidas diante da ausência destes mecanismos internacionais e significa uma ameaça a todo o sistema econômico e financeiro internacional, mas sobretudo uma ameaça a todos os países em desenvolvimento. E se a comunidade internacional não encara de maneira conjunta este tema, então esta possibilidade é muito mais perigosa. A partir da perspectiva boliviana, o presidente Evo Morales tem sido muito claro ao sustentar que qualquer coisa que ocorra ao governo e ao povo argentino afeta também a Bolívia e o seu povo. Neste sentido, nossa solidariedade é militante e se expressa em todos os sentidos que nos diga a Argentina.

Oscar González: – Em 1985 o líder da Revolução Cubana, Fidel Castro, travou uma batalha devido ao pagamento da dívida, que era impagável. Isso demonstra que vem desde muitos anos e, embora se manifeste na Argentina, afeta a todos nossos países. Tudo isto que vemos da especulação financeira internacional, aproveitando os avanços tecnológicos que ocorreram, porém quero insistir no ponto de que a ONU tem que atender estes temas porque às vezes tudo fica entre as elites financeiras internacionais, e o que é necessário é uma verdadeira reestruturação do sistema financeiro global. A ONU, que é a organização mais participativa e democrática, deveria discutir sobre esses assuntos e tomar alguma medida, mas o que acontece é que não há uma vontade política de avançar sobre isso a partir dos centros de poder.

X. L.:– Se consegue se impor a posição do sistema financeiro será gravíssimo, porque cairá o investimento social. No Equador se dizia que teríamos de guardar dinheiro, sermos precavidos, porém na realidade se guardava para garantir o pagamento da dívida externa. Isso era tudo e se a Argentina não supera esta situação se põem em risco todos esses investimentos no social. A dominação dos anos 90 não é algo que esteja desaparecendo. Há ainda uma presença muito forte mais além inclusive das mudanças pelas quais passa a região latino-americana. Ferramentas de dominação na América Latina foram os golpes e depois o neoliberalismo. (O juiz) Griesa e os fundos-abutre são outra forma de dominação: o poder sem Estados.
(Foto: Página/12)
Marita Pérceval: – É o poder que humilha, especula, explora, silencia, compra, vende, rifa o futuro de milhões de seres humanos e, sobretudo, como (Margaret) Thatcher dizia, que havia que apequenar o Estado para engrandecer a Nação, todo este capitalismo financeiro seu objetivo mais claro, e oculto ao mesmo tempo, é que já não necessita dos Estados, ao contrário, porque são o espaço de inquietação e dificuldade (“molestia y obstaculización”). Então, quando propomos nos nossos países uma regulação não asfixiante, não vamos contra a liberdade, e sim contra a exploração que os mercados financeiros geram por atuar sem pátria e sem lei. Realmente as Nações Unidas surgem para que a prepotência dos poderosos não seja a regra que uma e outra vez humilha a ternura dos mais fracos, a esperança dos mais pobres, a utopia dos que estavam em situação de se desenvolver e não puderam. Hoje é a mesma coisa, então qual é o desafio? Equilibrar o poderio militar? Certamente que sim. Mas também é desentranhar, desmascarar e regular a forma sofisticada de exploração dos povos e seus Estados, que é a especulação financeira.

–Qual é o papel que cabe aos Estados nesta disputa?

S. L.: – Esse é um tema essencial e chave. Nos anos 90, com o neoliberalismo, os Estados foram retirados do tabuleiro das relações econômicas a todo custo. Por isso houve uma onda de privatização de tudo e o Estado foi reduzido à sua mínima expressão. O que está ocorrendo com os fundos-abutre tem a ver com isto. Agora nesta etapa da história são nossos Estados, da América Latina e do Caribe, os que estão demonstrando que essa lógica depredadora não só acabará com os Estados, mas também com a humanidade. A crise financeira é tão perigosa como a crise da mudança climática. Ambas, deixadas por si mesmas, têm como final do seu caminho acabar com a humanidade. Por isso é imprescindível o fortalecimento dos nossos Estados e não só isolados, mas sim unidos, não digo aliados, que não é o mesmo, porque a batalha que está travando a Argentina não é só da região, e sim uma batalha da humanidade. Porque se deixamos que estes fundos-abutre consigam uma vitória, os derrotados seremos todos. Porque a lógica da redução do Estado, que não tenha peso e não importe nada, é a mesma que em seguida vai nos obrigar a privatizar nossas águas, nossos recursos naturais.

M. P.: – O que se põe em julgamento agora e se tenta obstar é a soberania do Estado, que não é um gesto, mas sim a expressão de um povo independente que elege um projeto de vida, que está constituído como Estado de Direito a partir de sua Constituição e isto nada importa porque pode a decisão dum juiz de primeira instância, ainda outorgando-lhe lucidez mas não legitimidade e justiça, pode mais do que vale uma Constituição. Creio que não podemos nos  surpreender nem tampouco ser paranoicos, porém a legitimidade de origem de nossos governos não está questionada? Apesar do voto popular que se expressa nas urnas, não se questiona como ocorre na Venezuela? Não são batalhas isoladas.

X. L.: – Em meio a essa profunda crise que forçou nosso povo a ser migrante houve setores vinculados ao capital internacional que enriqueceram como nunca. Gente dos nossos países que ficou mais rica e isso quer voltar como se nada tivesse acontecido no mundo. Não podemos tolerar. Por isso insisto que eles têm um aliado poderoso que são os meios de comunicação, que querem nos fazer acreditar que isso é o normal, que a recuperação do Estado é uma deformação destas esquerdas alucinadas.
(Foto: Nodal)
Samuel Moncada: – Nosso chanceler lembrou em Washington a doutrina Drago, de um jurista argentino que em 1902, por um caso da Venezuela, propôs a doutrina de que não se pode usar a força por razões de dívida. E essa foi uma das grandes bandeiras no tema da soberania. Mas não é somente isso. Em 1974 se aprovou nas Nações Unidas a Carta dos Direitos Econômicos dos Estados, que dizia que quando uma compensação seja motivo de controvérsia será resolvida “conforme a lei nacional do Estado”. Isto está escrito, ninguém o cumpre, mas é um princípio geral das Nações Unidas que se esqueceu. É ridículo que um juiz de primeira instância decida sobre a jurisdição e os interesses de todos os Estados do mundo. E o importante é que a Corte Suprema dos Estados Unidos decidiu não interferir. Disseram “não há caso para se discutir”, quer dizer, apoiaram o juiz. Quando (ex-presidente Carlos) Menem decidiu, como muitos presidentes do mundo, ignorar esta Carta da ONU e submeter sua jurisdição nacional à jurisdição de Nova Iorque, criou estas condições. Agora, assim como se entrega, também se resgata. Chegou a hora de resgatar e desconhecer Nova Iorque como a jurisdição mundial.

–Por que essa unidade regional que se expressou na OEA não pôde  traduzir-se em avanços mais concretos?

S. L.: – Avançamos muito e nos falta muito por avançar. Que não se espere que o malfeito durante dois séculos se solucione em 5 ou 10 anos. Temos que entender que apesar do que se deu na Unasul e que muitos de nossos países estão dispostos a avançar, outros são mais reticentes, não é uma homogeneidade. Nos falta ousadia, sim, mas acredito que temos avançado e não há que menosprezar esses avanços, há que materializá-los e institucionalizá-los. Estamos na direção correta.

O. G.: – A mudança que teve lugar na região poderia ser ilustrada com a projeção que se tem levando em conta Cuba. Viemos duma época, nos anos 60, em que os EUA conseguiram isolar Cuba e impor a ruptura das relações diplomáticas dos governos. Hoje temos uma situação completamente diferente, com a projeção unânime de condenação da região à manutenção do bloqueio, temos a integração solidária da região e Cuba acaba de receber a autoridade da Celac. Esta é uma demonstração clara de quais são os novos sinais que imperam na região.

S. L.: – Este tema desnuda muitas coisas. Temos 22 resoluções das Nações Unidas contra o bloqueio a Cuba e parece que é como se não existisse porque a política não se move um ápice. Ocorre com Malvinas, os fundos-abutre, Palestina, com uma enorme quantidade de temas. Este punhado de países dentre os 193 da ONU, e sobretudo os Estados Unidos, que é a expressão mais grosseira da acumulação de poder econômico, financeiro, militar, na história da humanidade, pretendem controlar as relações de poder. Se pode resumir em poucas palavras, a ameaça maior que pesa sobre o planeta nestes momentos são os Estados Unidos. Do mesmo modo que um juiz deste país pode causar aflição em outros países, os Estados Unidos podem determinar que país invadir, que país não invadir, que país bloquear ou não, que interesses defender e que interesses destacar. Assim se resume inegavelmente como está organizado o mundo. Este caso dos fundos-abutre tem que ser um impulso para a construção de um mundo diferente.

Tradução: Jadson Oliveira

Comentários

Edelson disse…
Caro Jadson,
Muito interessante essa entrevista. Obrigado pela tradução. Um forte abraço.
Edelson