RAÚL ZAFFARONI: NA AMÉRICA LATINA, GOVERNOS INCLUSIVOS SOFREM LINCHAMENTOS DO POPULARISMO MIDIÁTICO

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(Foto: RT/Carta Maior)

RAÚL ZAFFARONI: AMÉRICA LATINA PROTAGONIZA UM GENOCÍDIO EM GOTAS

O juiz da Suprema Corte Argentina Raúl Zaffaroni analisou o massacre dos estudantes mexicanos, de impacto difícil de medir até mesmo no México.

Na América Latina, os presos são sempre jovens pobres de bairros precários. São os mesmos que se tornam vítimas preferidas dos homicídios. Os governos inclusivos se tornaram alvo de ameaças e linchamentos do popularismo midiático, a serviço dos modelos excludentes.

Por Martín Granovsky, Página/12 - reproduzido do portal Carta Maior, de 18/11/2014 (o título principal é deste blog)

Brasil e México são dois dos países que costumavam requerer a presença de Raúl Zaffaroni desde antes de sua nomeação como ministro da Suprema Corte . Ambos lhe provocam reflexões que acabam tendo como assunto as diferentes caras da morte no continente. No México, os distintos funcionários do Estado parecem se dedicar a negar, talvez até o ponto de negar a própria investigação, toda a ligação entre o aparato estatal e os criminosos da violência do tráfico de drogas que supostamente sequestraram e mataram os 43 estudantes. O relatório da Procuradoria revela que o Estado nacional não avançou o suficiente na pesquisa, a tal ponto de a Equipe de Antropologia Forense precisou se transformar em autoridade internacional para dizer que os restos encontrados até agora não são os dos estudantes de Ayotzinapa, assassinados no município de Iguala, dentro do estado de Guerrero. 

O massacre de Ayotzinapa tem grande impacto no México e no mundo. Por que isso, após cem mil vítimas entre mortos e desaparecidos durante o sexênio do ex-presidente Felipe Calderón?
 
Esta aberração sensibiliza e dá visibilidade internacional ao massacre. Não nos esqueçamos que são  estudantes e a memória coletiva mexicana revive o caso Tlatelolco-Nonoalco, isto é, dos crimes impunes de 1968. Calderón, irresponsavelmente e por pressão das agências norte-americanas, levou adiante uma “guerra às drogas” que, como era de se esperar, não conseguiu acabar com o tráfico, mas apenas desequilibrá-lo e bagunçá-lo, gerando uma “guerra de todos contra todos”. O mais próximo de uma regressão hobbesiana. Desde o começo de sua gestão, aconteceu um aumento de homicídios que hoje parece ter alcançado uma estabilidade. O discurso da mídia e o oficial consideram essa estabilização uma “melhoria” somente por não aumentar a frequência de mortes.

Pela informação disponível até o momento o caso de Ayotzinapa é um crime de lesa humanidade?

Pelo menos está claro que se trata de uma violação de elementares direitos humanos e de um crime de Estado. A responsabilidade internacional do Estado está clara: tudo indica que a ação policial com a ação homicida massiva se sobrepôs. De qualquer maneira, a questão terá que ser aprofundada: os estudantes são as únicas vítimas ou estamos diante de um crime massivo continuado por “gotejamento”?

Juridicamente importa saber que nível do Estado participou do sequestro e do massacre, se é o Estado federal, Guerrero ou o município de Iguala? E se fosse um grande grupo de traficantes?

Diante do direito internacional, o Estado é sempre um, não importa se a violação foi cometida por uma autoridade nacional, estadual ou municipal. Tudo indica que houve participação policial. Se fosse uma organização do tráfico, o Estado também não deixaria de ser responsável, porque há pelo menos uma omissão gravíssima na tutela da vida humana. Não há indícios de que se tenha feito um esforço adequado à ameaça massiva contra a vida. Mas eu insisto, isto vai além de um caso pontual: nas fossas há muitos cadáveres, não apenas 43.

Cada vez que as palavras “drogas” e “narcotráfico” aparecem alguém propõe usar tanques de guerra. Neste jornal, o historiador Ariel Rodríguez Kuri disse que o México já chegou à “narcopolítica”. O que se deve fazer? 

Eu levaria muito tempo para responder e também tenho grandes dúvidas, sobretudo quanto ao problema econômico que a proibição da cocaína gerou. Não me animo a falar da legalização, sem antes refletir sobre os efeitos do desaparecimento da atividade econômica de sobrevivência gerado, a mão de obra que emprega ao longo de toda a cadeia de produção, o efeito sobre a economia mundial e o destino das organizações criminosas que se estruturaram em seu entorno. Não acredito em soluções simplistas e irreflexivas. E ainda, o verificável é que o fato até agora é suicida: não diminuiu o consumo, mas o expandiu, não reduziu o tráfico, mas regulamentou seu preço, mantendo reduzida a oferta. A repressão não foi mais do que a junta reguladora da mais valia do serviço de distribuição das drogas. Se o México tivesse demorado vários séculos para ter o número de mortos por overdose de cocaína, que hoje tem uma concentração de chumbo provocada por uma “guerra”, perdida desde o início. 

Nos últimos dez ou doze anos, a existência de governos reformistas ou inclusivos na América Latina coincidiu, contraditoriamente, com um maior índice de presos em relação ao total de habitantes. Sem falar de governos conservadores como o mexicano. Que setores sociais afeta?

Na América Latina, os presos são sempre jovens pobres de bairros precários. São os mesmos que se tornam vítimas preferidas dos homicídios. Os governos inclusivos se tornaram alvo de ameaças e linchamentos do popularismo midiático, a serviço dos modelos excludentes. Em alguns países de nossa região há uma clara inclinação racista, assim como nos Estados Unidos: a maioria dos presos são negros. Também é de negros a maioria das vítimas de execuções sem processo, letalidade policial ou “gatilho fácil”. Entre violência homicida, letalidade policial e prisões, acredito que a América Latina, independentemente do estrito tecnicismo jurídico do termo, protagoniza uma situação de genocídio por gotejamento, por cotas ou continuado.

Como se pode reverter a prisionização de pobres, jovens e vulneráveis, feita sobretudo por prisões preventivas sem condenação?

Antes de tudo, não usando a prisão para o que não for necessário. A prisão não pode ser usada para qualquer crime, mas para os crimes graves, quando já não existe mais remédio. O país que tem mais presos na nossa região é o Brasil, e certamente quase 30% estão presos por furto, ou seja, por roubar sem violência, somente em função da famosa “reincidência”. Na Argentina, propusemos a racionalização da reincidência – não a supressão de sua relevância, como se diz - , mas isso serviu para que um inescrupuloso usasse como propaganda para ver se consegue se tornar presidente e para que muitos juízes se espantassem diante da ameaça de serem estigmatizados. Eu não me espanto.

Por que não?

Por que me espantam muito mais os jovens em cadeias que são campos de concentração, ou talvez de extermínio, apesar de não usarem câmaras de gás. Quero ser muito claro nisto: nunca vamos diminuir o número de presos, nem de homicídio, nem da violência se não levarmos as coisas a sério. Os problemas que temos na região são, basicamente, a economia produto da proibição da cocaína, as mídias concentradas atuando a favor de modelos excludentes, a difusão inusitada de armas de fotos e modelos institucionais de polícia.

Como é o contraponto desses quatro fatores?

A situação regional em alguns países está chegando a limites de nunca imaginados. A mídia concentrada nesses países dissimularam ou normalizaram. Nos países do Cone Sul, relativamente resguardados, entre outras coisas por razões geopolíticas, criam boa parte da violência ou inclusive a produzem. Se não tratarmos destes quatro problemas seriamente, as coisas continuarão cada dia pior. Ou seja, cada dia haverá mais mortos.
 
Tradução: Daniella Cambaúva

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