LUIZ FILGUEIRAS: A ESQUERDA SOCIALISTA NÃO PODE APOIAR O GOVERNO DILMA, MAS TEM QUE SER CLARAMENTE CONTRA O IMPEACHMENT

Manifestação em Salvador no último dia 20 contra o impeachment, contra o "ajuste", contra a direita e por mais direitos (Foto: Jadson Oliveira)
“A esquerda socialista tem que se posicionar, claramente, contra ele (o impeachment), classificá-lo como “golpe” institucional e atuar concretamente para impedi-lo; não pode ter receio de ser confundida com os apoiadores do governo, deixando claro, de todas as formas, que não concorda com esse governo e que se constitui numa oposição de esquerda que tem propostas completamente distintas”.

“A nossa fragilidade política não será contornada por arroubos retóricos nem pelo medo de “nos misturarmos e sujarmos as mãos”; o emparedamento do atual governo pelas forças de direita e extrema direita as fortalecerá e criará um ambiente político de enorme dificuldade para os trabalhadores e a esquerda socialista”.

NOTAS PARA A ANÁLISE DE CONJUNTURA - 18/08/2015

Por Luiz Filgueiras (*) (texto enviado ao blog, via e-mail, pelo companheiro José Donizette, mais conhecido como Goiano – o título, os destaques e a foto acima são deste blog)

1- O Partido dos Trabalhadores, suas Direções e o Lulismo são os responsáveis fundamentais, principais, pela recente ofensiva política da direita e a ampliação e difusão de sua ideologia e dos seus valores na sociedade brasileira.

A partir dos anos 1990, após a derrota eleitoral das forças de esquerda no ano anterior, representadas pela candidatura de Lula, e o início da efetivação da agenda neoliberal pelo Governo Collor, iniciou-se o processo de transformismo do PT - que o levaria definitivamente, após a vitória de Lula nas eleições de 2002, para o campo da defesa da ordem capitalista num país periférico. Essa vitória, tal como ocorreu - lembrem-se da Carta ao Povo Brasileiro -, teve como pré-condição fundamental a aceitação prévia dessa ordem.

Diferentemente do transformismo da socialdemocracia europeia, o processo de transformismo do PT iniciou-se antes da sua chegada ao governo e, portanto, antes mesmo da implementação de qualquer de seus pontos programáticos. No entanto, tanto lá como cá, a circunstância decisiva para o transformismo foi a ascensão político-ideológica do neoliberalismo nos países capitalistas e a derrota do chamado “socialismo real” - em que pese o PT ter nascido criticando essa experiência.

O transformismo político, individual e/ou de grupos, se caracteriza pela incorporação, pelas forças contra hegemônicas, do ideário político da ordem - passando a defendê-lo e a operacionalizá-lo na prática, mas mantendo um discurso e uma retórica que lembram ainda a sua atuação passada, mas já fora de lugar. Mas o transformismo político é acompanhado, necessariamente, pelo transformismo ideológico, ético e operacional. Daí não haver nenhuma surpresa nos escândalos de corrupção do “Mensalão” e, agora, da chamada operação “Lava-Jato”. A corrupção na esfera social e política não se trata apenas, nem fundamentalmente, de um problema meramente moral e individual; ela está incrustada nos mecanismos institucionais da ordem burguesa e na “balcanização do Estado”. No caso do Brasil, podem ser citados, por exemplo, o financiamento privado das campanhas eleitorais, as emendas parlamentares individuais, a enorme quantidade dos chamados cargos de confiança e a fragilidade jurídica e de fiscalização das relações entre o Estado e o capital - em especial as licitações, mas não apenas. Todos os partidos que atuam defendendo e se comprometendo com essa ordem, e seus respectivos governos, inevitavelmente se corrompem; basta lembrar o Governo Sarney (tido, então, como o mais corrupto da história), o Governo Collor (“o caçador de marajás”) e o Governo FHC (com o seu processo mafioso de privatizações das empresas públicas e a compra de votos de deputados para aprovação de um segundo mandato).

Mas a denúncia e a crítica (em geral, cínicas e hipócritas) à corrupção é sempre, em todos os países e em todos os momentos, uma arma política poderosa; no Brasil, especificamente, podemos citar o “mar de lama” que levou ao suicídio de Getúlio Vargas, a eleição de Jânio Quadros com a sua “vassoura”, o golpe militar de 1964, a eleição de Collor e a sua derrubada e, agora, as manifestações contra a corrupção na Petrobrás e a defesa do impeachment. A corrupção é sempre a ponta do iceberg e o elemento mobilizador; no entanto, no fundo, encoberta, se encontra a luta entre as classes e frações de classes por seus interesses, em disputa pela hegemonia e o controle do Estado.

O transformismo político-ideológico-moral do PT, ao desarmar politicamente os setores populares e os movimentos sociais, transformando-os em boa medida em correia transmissora do Lulismo - fenômeno crucial para a destruição/descaracterização do PT e a sua subordinação ao governo - criou a atual conjuntura política adversa para os valores e as propostas da esquerda socialista. Independente do que venha ocorrer no futuro imediato, todo esse processo tem ajudado a desmoralizar a esquerda socialista em geral e a dar combustível para a direita e as forças reacionárias. A luta da esquerda socialista, pela conquista da hegemonia na sociedade, que já era difícil, tornou-se, a partir de agora, muito mais desfavorável; essa é a herança dramática que o PT, o Lulismo e os seus Governos estão deixando para as forças socialistas anticapitalistas.

Por tudo isso, não se pode ter ilusão a respeito da sinceridade do socialismo e do projeto político do PT, em que pese a existência no seu interior, em posição subordinada, de tendências políticas socialistas e com as quais devemos dialogar. O seu transformismo não tem retorno e, agora, a sua desmoralização é incomensurável. Constato isso com uma enorme tristeza; uma experiência socialista que criou enormes esperanças, não só no Brasil, mas que terminou por se transformar em seu contrário.

2- A natureza dos Governos de Lula e Dilma

No Brasil, as políticas e reformas neoliberais iniciadas a partir do Governo Collor acabaram por constituir um padrão de desenvolvimento capitalista que pode ser denominado como sendo Liberal-Periférico. Esse padrão se aprofundou durante os Governos de FHC e se consolidou durante os Governos Lula e Dilma.
As características estruturais fundamentais desse padrão, que o diferencia do padrão anterior - o conhecido Modelo de Substituição de Importações -, podem ser resumidas em cinco pontos:

1- A relação capital/trabalho teve a sua assimetria aumentada a favor do primeiro, em razão da reestruturação produtiva e da abertura comercial - que implicaram o crescimento do desemprego estrutural, do trabalho informal, da terceirização e da precarização do trabalho em todas as suas dimensões. Como consequência, a capacidade de organização, mobilização e negociação dos sindicatos se reduziu dramaticamente.

2- As relações intercapitalistas, em razão da abertura comercial e financeira e das privatizações, foram redefinidas, alterando-se a posição e a importância relativa das distintas frações do capital no processo de acumulação e na dinâmica macroeconômica: o capital financeiro (nacional e internacional) passou a ocupar posição dominante, deslocando a antiga hegemonia do capital industrial; o capital estatal perdeu relevância em favor do capital estrangeiro; e fortaleceram-se grandes grupos econômicos nacionais produtores/exportadores de commodities e o agronegócio.

3- A inserção internacional do país na nova divisão internacional do trabalho se alterou para pior, aumentando a sua vulnerabilidade externa. De um lado, a pauta de exportação do país se reprimarizou e se aprofundou o processo de desindustrialização iniciado ainda na década de 1980. De outro, cresceu dramaticamente a sua dependência financeira, fragilizando o Estado e reduzindo fortemente a sua capacidade de fazer política macroeconômica. Tudo isso decorreu da abertura comercial e financeira que também alimentou a desindustrialização do país e o crescimento da dívida pública.

4- O papel e a importância do Estado, no processo de acumulação e na dinâmica macroeconômica, se alteraram - em virtude do processo de privatização e da abertura financeira. O Estado fragilizou-se financeiramente e perdeu capacidade de regular a economia e de implementar políticas macroeconômicas e de apoio à produção.

5- Por fim, em razão de todas essas mudanças, e ao mesmo tempo alimentando-as, constituiu-se um novo bloco no poder, sob a hegemonia do capital financeiro, que passou a ditar as políticas fundamentais do Estado.

Em suma, o padrão é liberal porque foi constituído a partir da abertura comercial e financeira, das privatizações e da desregulação da economia, com a clara hegemonia do capital financeiro - frente às demais frações do capital. E é periférico porque o neoliberalismo assume características específicas nos países capitalistas dependentes, que o torna mais regressivo ainda quando comparado a sua agenda e implementação nos países capitalistas centrais.

Do ponto de vista da dinâmica macroeconômica, a característica fundamental desse padrão de desenvolvimento capitalista, que aprofundou ainda mais a dependência tecnológica e financeira do país, se expressa na sua extrema instabilidade e em uma grande vulnerabilidade externa estrutural - que acompanham de perto as alterações cíclicas da economia internacional. Esse padrão de desenvolvimento, com as características estruturais aqui mencionadas, iguala todos os governos brasileiros que se sucederam a partir de 1990.

No entanto, esse padrão de desenvolvimento, desde a sua constituição, e a depender da conjuntura econômica internacional, passou por distintos regimes de política macroeconômica: a âncora cambial do Plano Real no primeiro Governo FHC, o tripé macroeconômico (metas de inflação, superávit fiscal primário e câmbio flutuante) rígido no segundo Governo FHC e em parte do primeiro Governo Lula e, por fim, esse mesmo tripé flexibilizado no segundo Governo Lula e no primeiro Governo Dilma. Mais recentemente, a partir do segundo Governo Dilma retornou-se à aplicação rígida desse tripé.

Esses distintos regimes, cujas vigências dependem decisivamente da conjuntura internacional e que refletem prioridades e vantagens diferentes no que se refere às distintas frações do capital, sempre implicam em alguma acomodação do bloco no poder. Portanto, são esses regimes de política macroeconômica que diferenciam os dois Governos de FHC, de um lado, e os dois Governos de Lula e o primeiro de Dilma de outro - apesar de todos eles se assemelharem, ao aceitarem e promoverem o Padrão de Desenvolvimento Capitalista Liberal-Periférico.

O “boom” econômico internacional nos anos 2000, só interrompido pela crise mundial deflagrada em 2008, permitiu, em razão da redução da vulnerabilidade externa conjuntural do país, a flexibilização (relaxamento) do tripé macroeconômico. Essa flexibilização, associada a outras políticas adotadas principalmente a partir do final do primeiro Governo lula - Bolsa Família, aumento real do salário mínimo e um programa de habitação popular -, teve como consequência a elevação das taxas de crescimento do país e a redução das taxas de desemprego, assim como a diminuição da pobreza absoluta e uma pequena redução da concentração de renda no interior dos rendimentos do trabalho.

A melhora desses e de outros indicadores veio acompanhada de uma inflexão do bloco no poder, na qual o capital financeiro sofreu um deslocamento em sua hegemonia absoluta, tendo que admitir o crescimento da influência de outras frações do capital na condução do Estado: o agronegócio, o capital produtor e exportador de commodities, as grandes empreiteiras e os grandes grupos do comércio varejista; em suma a chamada burguesia interna, que passou a ser objeto prioritário das políticas do Estado, em especial através do BNDES, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal e da Petrobrás. E tudo isso, apoiado em um maior protagonismo do Estado, pode ser feito sem atingir os interesses fundamentais do capital financeiro.

Esse momento conjuntural específico do Padrão de Desenvolvimento Liberal Periférico - produto de uma conjuntura internacional favorável e caracterizado por um regime de política macroeconômica que flexibilizou o chamado “tripé”, reacomodou as distintas frações do capital no interior do bloco no poder e permitiu incorporar, via mercado e de forma passiva, determinadas demandas populares -, foi “vendido” politicamente pelo PT e o Governo Lula como sendo um novo padrão de desenvolvimento, denominado por eles de Neodesenvolvimentismo (desenvolvimento com distribuição de renda e inclusão social) - que teria superado o Padrão Liberal Periférico característico dos Governos Collor e FHC.
No entanto, a crise mundial do capitalismo deflagrada em 2008, com a consequente piora da conjuntura internacional, desmentiu categoricamente essa ilusão. Ela incialmente dificultou e, depois, acabou por inviabilizar a continuação da flexibilização do tripé macroeconômico e a compatibilização dos interesses divergentes das distintas frações do capital e dos distintos setores populares.

Com isso, a fragilidade e reversibilidade dos pequenos benefícios conjunturais concedidos à classe trabalhadora vieram à tona, com o retorno do tripé macroeconômico em sua versão rígida e a ameaça de novas reformas neoliberais e aprofundamento das já efetivadas. Não há como desconhecer: sem as reformas estruturais democráticas, abandonadas pelo PT no seu processo de transformismo, não pode haver mudanças essenciais na situação da classe trabalhadora.

Desse modo, não se pode ter qualquer ilusão a respeito da capacidade do Padrão de Desenvolvimento Capitalista Liberal Periférico de resolver os problemas e atender as necessidades da classe trabalhadora; nem tampouco ter dúvidas da natureza apassivadora dos Governos Lula e Dilma - que despolitizam a classe trabalhadora e incorporam, via mercado, sem qualquer mudança estrutural e muito parcialmente, algumas de suas demandas.

3- A conjuntura imediata

A permanência da crise econômica mundial e a deterioração da situação macroeconômica do país reacendeu a disputa entre as distintas frações do capital, principalmente a partir da segunda metade do primeiro Governo Dilma. Esse é o sentido mais profundo da atual conjuntura, na qual o regime de política macroeconômica preferido pelo capital financeiro voltou a ser adotado tal como no início do primeiro Governo lula.

No entanto, essa disputa está mediada e filtrada pelo sistema político-partidário, a grande mídia e as Instituições e as distintas esferas de poder do Estado – o Executivo, o Legislativo e o Judiciário -, evidenciando que os distintos interesses em jogo vão muito além da estrita disputa travada entre as distintas frações do capital. Além disso, esses interesses não são facilmente e imediatamente discerníveis no plano partidário e da ação política imediata, de tal forma que a sua representação no plano político se apresenta de forma transversa, fragmentada, confusa e, muitas vezes, assumindo uma forma obscura. Misturando-se a eles, complementando-os ou opondo-se, existem aspirações e interesses de outros sujeitos, que atuam ativamente, como, por exemplo, setores da chamada “classe média”, as diversas Igrejas – em especial as Evangélicas -, as Centrais Sindicais e Patronais e os diversos movimentos sociais.

Nesse quadro, os efeitos recessivos do regime de política macroeconômica do “tripé rígido” adotado pelo Governo Dilma - eleita de forma apertada e defendendo um caminho oposto ao do ajuste fiscal -, associado à campanha anticorrupção deflagrada e promovida de forma articulada pelo Judiciário e a grande mídia, turbinaram a oposição de direita, partidária e não partidária - cuja expressão maior, no âmbito institucional, é a composição extremamente conservadora do atual Congresso Nacional. Tudo isso levou ao emparedamento do Governo Dilma, ao seu isolamento e a sua fragilização, dando origem a uma crise política que, ao mesmo tempo, impulsiona e é impulsionada pela crise econômica. Com isso, o Governo Dilma tem sido empurrado cada vez mais para a direita; mas, curiosamente, quanto mais Dilma é empurrada para a direita, assumindo e realizando a agenda neoliberal de Aécio, mais agressiva se torna a atuação das forças neoliberais e conservadoras, fragilizando ainda mais o Governo - que passou a perder apoio até entre os seus eleitores tradicionais.

Para piorar ainda mais o quadro, desde 2013 tem-se ampliado a difusão e influência de valores reacionários na sociedade civil, com a ascensão política de uma direita ideológica não partidária, organizada, atuante e mobilizadora - em que se misturam e se fundem valores neoliberais e conservadorismo/reacionarismo moral e de costumes. Esse é um fato novo: a direita convocando e dirigindo manifestações de massa nas ruas, disputando com a esquerda, de forma explícita, a hegemonia no interior da sociedade civil. Para confundir ainda mais as coisas e embaralhar os distintos campos políticos, ambas as oposições de direita - a partidária e a não partidária - passaram a criticar e a dificultar o ajuste fiscal proposto pelo governo.

No âmbito parlamentar, a ofensiva da direita e do conservadorismo vem se expressando em várias iniciativas, tais como: a redução da maioridade penal, o projeto de generalização da terceirização, a lei antiterrorismo, entre outros.

Nesse processo, a partir de certo momento, passou-se a propor o impeachment da Presidente Dilma nas mobilizações de rua organizadas pela direita não partidária e que aos poucos, de forma vacilante, começou a ter adeptos também no âmbito político partidário. A maior ou menor aproximação entre a direita partidária e não partidária, em cada momento da crise, é o termômetro que sinaliza a possibilidade efetiva ou não de se levar às últimas consequências o pedido de impeachment - em alguns momentos parecendo que o Governo Dilma está por um fio e, em outros, parecendo que a proposta está se esvaziando.

A divergência no interior do PSDB, sobre apoiar ou não o impeachment pedido pelas mobilizações de rua e de que forma fazê-lo, evidenciam de forma clara duas coisas: 1- As ambições políticas e vaidades dos vários caciques desse Partido dificultam a unidade de ação da direita partidária, bem como a sua aproximação das ruas. 2- O protesto contra a corrupção e o pedido de impeachment aparecem como o que eles realmente são, isto é, instrumentos na disputa política das diversas forças sociais para se chegar ao poder e defender e implementar os seus respectivos interesses.

Mais recentemente, observam-se algumas circunstâncias e iniciativas que parecem ser mais favoráveis ao governo, ajudando-o a começar sair de seu total isolamento. Do ponto de vista das iniciativas políticas, destaca-se, primeiramente, um movimento de aproximação do Governo com os Senadores, que procura isolar o Presidente da Câmara para dificultar suas ações contra o ajuste fiscal do governo e a sua tentativa de facilitar o encaminhamento do impeachment. Essa aproximação tem por instrumento a chamada Agenda Brasil - uma espécie de programa genérico, neoliberal/corporativista e de interesses escusos -, proposta pelo Presidente do Senado e apresentado como, supostamente, um conjunto de medidas para a retomada do crescimento.

A existência de possível acordo mais amplo em torno dessa iniciativa, que envolva o Governo, o Senado, parte da Câmara, a grande mídia e frações do grande capital não está ainda clara; mas não seria nenhuma surpresa ou novidade na história do país: a conciliação do “andar de cima”, sem rupturas, é sempre a fórmula utilizada pelos setores dominantes nos momentos de crise aguda; o capital tem horror da instabilidade econômica e política. O certo mesmo é que a proposta do Presidente do Senado foi precedida por encontros dos donos das Organizações Marinho com Ministros e lideranças político-partidárias e pela manifestação, através de uma nota, das Federações da Indústria de SP e RJ na qual pedem moderação e responsabilidade para a solução da crise. Além disso, a Agenda Brasil já se constituiu em objeto de uma reunião do Ministro da Fazenda com os principais banqueiros do país e, nos últimos dias, pode-se notar certo arrefecimento das críticas ao governo por parte da grande mídia e mesmo o seu menor empenho no estímulo e convocação das manifestações de domingo último (dia 16).

A outra iniciativa importante foi a Marcha das Margaridas em Brasília e a reunião de centrais sindicais e movimentos sociais com a Presidente da República e Lula, nas quais foi explicitada a disposição de defesa do mandato da Presidente - sinalizando a capacidade do governo em incentivar, se necessário, a mobilização de trabalhadores e segmentos populares contra o impeachment - em que pese críticas que foram feitas, na mencionada reunião, ao caminho que vem sendo trilhado pelo segundo Governo Dilma.

Não há dúvida, pelo o exposto até aqui, que a esquerda socialista não pode dar nenhum apoio e crédito ao Governo Dilma e às suas políticas, que claramente penalizam os trabalhadores e expressam, sem possibilidade de disfarce, os interesses de certas frações do capital e, em especial, os interesses do capital financeiro. Ao mesmo tempo, a esquerda socialista não pode ficar alheia e/ou neutra com relação à possibilidade do impeachment, claramente patrocinado pelas forças mais reacionárias da sociedade brasileira.

4- A possibilidade do impeachment

O impeachment é um instituto legal e democrático, previsto na Constituição do país; mas é um instrumento de natureza essencialmente política. Portanto, se constitui em uma arma na atual disputa política que ora assistimos e participamos e que já vem provocando efeitos, independentemente de vir a ser efetivado ou não no futuro. Em especial tem ajudado a empurrar o Governo Dilma cada vez mais para a direita, tornando-o refém das forças mais reacionárias representadas no Congresso Nacional.

Diferentemente do impeachment de Collor, na atual conjuntura a sua proposição é uma arma que vem sendo utilizada, claramente, pela direita não partidária e alguns setores da direita partidária; além de estimulada e também utilizada pela grande mídia. Faz parte da tentativa de controle do Estado pelas forças político-sociais mais regressivas e reacionárias da sociedade brasileira. A sua simples ameaça, sem qualquer tipo de confrontação, fortalece essas forças político-sociais e sua eventual efetivação se desdobrará num cenário político ainda mais adverso do que o atual para os trabalhadores e a esquerda socialista.

Portanto, o impeachment não é um problema apenas do Governo Dilma e do PT; ele atinge toda a esquerda socialista agora e no futuro. Os Governos Lula e Dilma, assim como o PT, são vistos, queiramos ou não, como socialistas, antiliberais e corruptos. As manifestações de rua, puxadas por organizações de direita explicitam isso de forma clara; agora, nas de domingo (dia 16), deixaram de fora qualquer crítica moral ou política ao Presidente da Câmara, acusado de propina no contexto da Operação Lava-Jato, porque o mesmo é um aliado que poderá facilitar o caminho do pedido de impeachment. Por tudo isso, a esquerda socialista tem que se posicionar, claramente, contra ele, classificá-lo como “golpe” institucional e atuar concretamente para impedi-lo; não pode ter receio de ser confundida com os apoiadores do governo, deixando claro, de todas as formas, que não concorda com esse governo e que se constitui numa oposição de esquerda que tem propostas completamente distintas.

E mais, quanto mais rapidamente a possibilidade de impeachment for descartada, mais claro e nítido ficará o cenário político, abrindo-se um maior espaço para a crítica e as propostas da esquerda socialista. A questão central da conjuntura é o confronto que opõe os que são a favor e os que são contra uma ruptura institucional nesse momento; a esquerda socialista não tem capacidade e influência na sociedade civil para substituí-la por qualquer outra. Não pode ficar apenas constatando que, em certos momentos, cresce a possibilidade efetiva do impeachment e, em outros, como agora - após as iniciativas citadas anteriormente e o menor tamanho das manifestações do dia 16 e sua menor repercussão na mídia -, reduz-se a possibilidade de sua ocorrência.

E o problema não se resolve com a adoção da palavra de ordem “nem Dilma nem Aécio”; que é justa de forma geral, tendo em vista o caminho e a estratégia independentes que a esquerda socialista deve percorrer na luta pela hegemonia e a conquista do poder, mas que, na atual conjuntura, como palavra de ordem para intervenção política na conjuntura, é apenas um slogan impotente – que vocaliza e deixa claro que, para a esquerda socialista, tanto faz que o impeachment ocorra ou não, como se nós tivéssemos capacidade de oferecer, nesse momento, uma terceira alternativa. Isso é um equívoco enorme; a nossa fragilidade política não será contornada por arroubos retóricos nem pelo medo de “nos misturarmos e sujarmos as mãos”; o emparedamento do atual governo pelas forças de direita e extrema direita as fortalecerá e criará um ambiente político de enorme dificuldade para os trabalhadores e a esquerda socialista.

A esquerda socialista, dentro das limitações de suas forças, tem que atuar como sujeito do processo, não pode esperar, como um expectador, o que vai acontecer no futuro. O futuro é marcado pelo passado, mas principalmente construído pelas ações que são feitas no presente; por isso, o futuro está sempre aberto, no sentido de ser possível mais de uma trajetória. O embate dos comportamentos e das ações a favor, contra ou neutros com relação ao impeachment ajudará a construir determinada trajetória que se imporá no futuro, definindo um cenário mais ou menos favorável aos trabalhadores e à esquerda socialista.

Desse modo, participar das manifestações do dia 20 é se posicionar e agir, ao mesmo tempo, contra as políticas do Governo Dilma e contra o impeachment, tal como está explicitado na convocatória oficial da manifestação assinada por inúmeros movimentos sociais e apoiada pelo PSOL e o PCdoB: em defesa dos direitos sociais, da liberdade e da democracia, contra a ofensiva da direita e por saídas populares para a crise. Contra o ajuste fiscal! Que os ricos paguem pela crise! Fora Cunha: Não às pautas conservadoras e ao ataque a direitos! A saída é pela Esquerda, com o povo na rua, por Reformas Populares!

Em razão do conteúdo dessa convocatória - pelos direitos dos trabalhadores e a democracia e contra o ajuste fiscal e às demais ações do Governo Dilma - o PT se recusou a colocar o seu nome nela - embora esteja ajudando na organização das manifestações. É notória a tensão política existente entre esses movimentos sociais, de um lado, e o PT e o Governo Dilma de outro; um motivo a mais para participarmos dessas manifestações e abrirmos um diálogo sincero com esses movimentos - ainda bastante influenciados pelo PT, mas que já dão sinais de certo descolamento, assim como manifestam claras discordâncias com o Governo Dilma.

Por fim, devemos reconhecer uma obviedade: a unidade da esquerda socialista é condição necessária e imprescindível para a superação de sua debilidade política, o fortalecimento da luta da classe trabalhadora e a viabilização de uma alternativa crível, própria desse campo político; a sua atual fragmentação é a razão de sua impotência em intervir e influenciar de forma relevante na conjuntura e, ao mesmo tempo, expressa uma cultura política autoritária e intolerante - que enxerga eventuais divergências conjunturais no seu interior como sendo divergências estruturais e estratégicas insanáveis. Esse comportamento se sustenta na dificuldade que temos em fazer as necessárias mediações políticas entre a busca do socialismo e as distintas conjunturas históricas - que expressa uma espécie de preguiça e acomodamento intelectual, em favor de fórmulas prontas.


(*) Luiz Filgueiras é professor titular da UFBa, PHD em Economia do Desenvolvimento, professor do curso de pós graduação de Economia Política e Desenvolvimento Econômico.

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